22 abril 2018

ARQUITECTOS E MEMÓRIA DO FUTURO

     
1. A memória viva nasce da preocupação com o futuro, do desejo de viver, de uma discreta insurreição contra o niilismo. Sem o horizonte do futuro, deixaríamos morrer o passado: foi e acabou. Como já tentei mostrar, várias vezes, nestas crónicas, o ser humano nunca está feito, acabado, é uma realidade aberta, em permanente devir, nostalgia e aventura.
Gostei de ouvir o filósofo Massimo Cacciari, em diálogo com o teólogo Enzo Bianchi, sobre Repensar o humanismo[1], mostrando que é uma quimera procurar definir o “homem”, esquecendo que somos um mundo de possibilidades. Definir é limitar. Estabelecer a lista completa das suas possibilidades, mediante a tecnociência, é o desejo da morte do desejo. É, no entanto, este que a oração acende:
«Conduz-nos, Deus,/ de questão em questão,/ de fogo em fogo,/ sem satisfações que ao tempo bastem/ e a nós assombrem// que passemos da catalogação/ do que julgamos conhecer/ ao poço dos enigmas infindáveis/ onde o rosto é para sempre fundo,/ desmentido, diferido// não nos mure a estrutura em espelho/ que escamoteia a procura da verdade,/ mas que o dom da tua palavra nos visite/ como o cantar do galo,/ a lembrar o dia novo,/ o perdão e a graça»[2].
Em 2015, publiquei aqui uma crónica com o título 800 anos é muito tempo[iii], para evocar o começo das celebrações do Jubileu do VIII Centenário da Ordem dos Pregadores (Dominicanos). Entretanto, em várias cidades do país, foram realizados congressos, conferências e eventos ligados a esta vasta história com os seus altos e baixos.
No dia 14 deste mês, foi lançada, na bela igreja do Alto dos Moinhos, uma obra importante para o conhecimento do percurso dos Dominicanos, desde a sua chegada a Portugal, em 1217, até à actualidade[iv].
No mesmo dia, a seguir à apresentação desse livro, foi projectado um vídeo sobre uma das realizações mais marcantes da renovação da Arte Sacra, fruto de um convite audacioso dos dominicanos, P. Couturier e P. Régamay, ao arquitecto Le Corbusier. Trata-se do famoso convento dominicano de Sainte Marie de La Tourette (Lyon, 1960).
Transitou-se, depois, para outros espaços do Convento, onde foi inaugurada uma extraordinária exposição sobre Dominicanos. Arte e Arquitectura Portuguesa. Diálogos com a Modernidade. A própria exposição é dedicada ao Convento de Cristo Rei (Porto, 1950-54), à Igreja de Nossa Senhora do Rosário (Fátima, 1962-65), à Capela da Escola Apostólica da Aldeia Nova (Ourém, 1964-67) e ao Convento de São Domingos (Lisboa – Alto dos Moinhos, 1989). A alta qualidade da exposição dessas significativas obras da renovação da Arte Sacra é, também ela, uma obra de arte, um regalo para os olhos e para a inteligência.
2. Não posso esconder as emoções que me provocaram todos esses momentos. Tinha diante dos olhos a minha própria história de aproximação e de membro apaixonado da Ordem dos Pregadores. Foi no Porto, numa casa perto do Hospital de Sto. António – antes da construção do Convento do Cristo Rei –, que fiz o exame de admissão à Escola Apostólica Dominicana (em Aldeia Nova). Aí vivi cinco anos espantosos, com jovens de todo o país. Merece o filme que vai fazer reviver esse Casarão de todas as alegrias e loucuras. Entrei para o noviciado no Convento de Fátima em 1953. Aí, comecei a estudar filosofia a partir dos seus debates contemporâneos, com uma equipa de professores de vários países. Procurava-se a fonte do rio a partir da amplidão da sua foz. A interrogação era a lei dessa escola, do Studium Sedes Sapientiae. Mais tarde, depois do Vaticano II, também fui aí professor de teologia e, com expressões alargadas pelo ISTA, nos Cursos de Verão e nos Encontros de Teologia para leigos, sobretudo em Coimbra e no Porto.
Depois de muitas andanças por vários continentes, regressei a Lisboa, ao Convento João XXIII, antes da construção do Convento de S. Domingos onde, além de muitas outras actividades, vou escrevendo estas crónicas desde há muitos anos.
Entrei numa ordem religiosa cuja longa história não é um peso. É uma demonstração de que as instituições podem ser um mundo de possibilidades criadoras ou de traições. Sempre me impressionou que S. Domingos não tenha deixado nada aos seguidores do seu projecto. Mandou-os estudar, fazer comunidade e testemunhar o Evangelho pela vida e pela palavra. Seriam eles que tinham de fazer e aprovar as orientações e as normas, segundo o modelo de democracia representativa. Criou um mundo de possibilidades, não um modelo de reprodução do mesmo.
3. Uma das realizações mais significativas da renovação da Arte Sacra, em França, foi obra do célebre pintor Henri Matisse, em Vence (1951). Segundo a tradição oral, respondeu ao apelo de uma freira que tinha sido seu modelo antes de entrar para o convento. Quando Matisse esteve doente, no hospital, essa freira era enfermeira e ocupou-se dele com tais cuidados que o pintor desejava dar-lhe um grande presente. Ela agradeceu: «temos uma capela de Notre-Dame du Rosaire, das irmãs dominicanas a que pertenço. Se a pintasse era o melhor presente que podia dar à comunidade». Ao procurar conhecer S. Domingos, teve a intuição genial de o pintar sem rosto. Cada dominicano ou dominicana, ao longo do tempo, não tinha de o reproduzir, mas de reinventar o seu desígnio no seio dos problemas e da cultura de cada época e de cada continente. Seja histórica ou não essa tradição oral, o resultado é admirável. Aquela capela é um céu aberto pela pintura terrena desse grande pintor.
Os arquitectos que realizaram a exposição no convento de S. Domingos (Alto dos Moinhos), que estará aberta nos dois próximos meses, não repetiram o passado. Abriram novas possibilidades de incarnação do projecto de S. Domingos em novas formas e não só de arquitectura. Esta inspira novas arquitecturas da vida.
Frei Bento Domingues, O.P.
           in Público 22. 04. 2018


[1] Este Encontro realizou-se no âmbito das atividades regulares do CITER (em parceria com o Instituto Italiano de Cultura) no Ciclo Lições Italianas sobre Estudos de Religião.
[2] José Augusto Mourão, O Nome e a Forma, Pedra Angular, Lisboa 2009, p. 170
[iii] 800 Anos é muito tempo!, Público, 08.11.2015
[iv] Coord. António Camões Gouveia, José Nunes, OP, Paulo F. de Oliveira Fontes, Os Dominicanos em Portugal (1216.2016), Centro de Estudos de História Religiosa (UCP), Lisboa, 2018. Cf A restauração da província dominicana em Portugal. Tenacitas. Coimbra. 2012. Sobre o carisma dominicano existe uma Biblioteca Dominicana em desenvolvimento


15 abril 2018

O IMAGINÁRIO PASCAL DO ALÉM-TÚMULO

      1. Uma biografia procura dar a conhecer o percurso entre o nascimento e a morte. A possibilidade de observar o desenvolvimento da vida intra-uterina é relativamente recente. Esta banalidade não pode ser esquecida na leitura das narrativas em torno da ressurreição de Cristo.
      Depois da morte, restam apenas as marcas que o falecido deixou nas suas obras e na memória dos vivos. No entanto, o imaginário da vida depois da morte sempre suscitou e alimentou insólitas “histórias” de terror e consolação[1]. Os “mapas” da geografia do Além e das crenças nos poderes invisíveis são abundantes na originalidade de cada povo e cultura. Parece que a maioria das pessoas recusa o niilismo. Não aceita que a morte seja o fim de tudo. No vocabulário cristão, a ressurreição impôs-se, mas continua a ser difícil exprimir a significação dessa gloriosa metáfora[2].
    Quando lemos e proclamamos, na Eucaristia, trechos das chamadas narrativas da ressurreição de Cristo (cujo facto ninguém presenciou, nem poderia presenciar), ficamos sempre mergulhados em muitas perplexidades.
        Por um lado, no dizer de S. Paulo, se não há ressurreição, Cristo também não ressuscitou e, se Cristo não ressuscitou, estamos ligados a nada ou, apenas, à memória do que foi e nunca mais volta.
       Recordar o exemplo que Jesus de Nazaré nos deixou – a figura mais extraordinária da humanidade – deve encher de alegria crentes, agnósticos e ateus. Para os cristãos, esvaziar a sua humanidade é um atentado contra a humanização de Deus.
         Por outro lado, as narrativas que falam de Jesus depois da morte enchem-nos de dúvidas e todas as exegeses aumentam as dificuldades. O que é contado aconteceu de facto, ou não são mais do que criações de uma imaginação delirante?
        Nessa escrita, o verosímil e o impossível parecem constituir a originalidade do seu tecido. A actuação de Jesus, umas vezes é apresentada à imagem do que aconteceu durante o seu percurso terreno, noutros casos a linguagem é de ruptura completa.
       Como mostrar que Jesus ressuscitado continua a ser o mesmo que viveu com os discípulos e que agora vive numa dimensão completamente nova e indizível? Como pode atingir-nos em todos os tempos e lugares e conviver com todos os seres humanos de todas as épocas da história?
        Os narradores tiveram de recorrer a todos os recursos da imaginação para exprimir o que supera a nossa experiência intra-histórica. A linguagem simbólica é muito mais realista do que a linguagem das ciências empíricas. Quanto mais poético mais real. A música é a sua alma e apenas ela pode sugerir o que nenhuma linguagem pode conter.
       2. Numa pequena tertúlia, surgiu a opinião de que essa observação era uma escapatória. Agora, as novas tecnologias oferecem e antecipam algo de muito mais milagroso e sofisticado do que as peripécias das narrativas e aventuras sobre a ressurreição.
     Como sou uma nulidade acerca das possibilidades das novas tecnologias, abstenho-me do ridículo de usar as suas linguagens na interpretação dos textos do Novo Testamento.
     Além disso, o uso que a liturgia católica faz desses textos não é para resolver problemas do passado nem para dar contributos à Quarta Revolução Industrial[3]. Pretende responder a esta simples questão: Jesus Cristo é ou não nosso contemporâneo? Umas vezes situamo-lo no passado, naquele tempo, ou no céu, à direita do Pai, numa espécie de férias prolongadas. Nas próprias orações das missas repete-se Ele que é Deus convosco. O Emmanuel, o Deus connosco, nessas expressões acaba por viver sem nós, situado no passado ou no “etéreo”. Não admira que as orações dos fiéis andem sempre a informar Deus acerca daquilo que por cá se passa. Não tem de ser assim.
     3. A arte de entrosar o passado e o presente foi-nos oferecida por S. Lucas[4]. Escreveu um conto – os Discípulos de Emaús – como se fosse acerca do passado para dizer o que sempre acontece numa comunidade cristã. Imaginou dois dos discípulos, tristes e desiludidos pelo que aconteceu ao seu Mestre e sem esperança na ressurreição prometida. O interessante do conto é que o próprio Jesus entrou no grupo e na discussão do que tinha sido o seu julgamento. Eles estranham a ignorância e a distracção deste forasteiro e explicaram-lhe, com todos os pormenores, o que Lhe tinha acontecido. Este mostra-se muito interessado. Acabam por acrescentar: «é verdade que algumas mulheres, que são dos nossos, nos assustaram; foram ao sepulcro e vieram dizer que tiveram umas visões e que Ele está vivo. Os homens verificaram a narrativa das mulheres, mas não O viram.»  
     Aí, o forasteiro explicou-lhes que não estavam a entender o que tinha acontecido. Não se dá por achado e explicou-lhes, a partir das Escrituras, o que a Esse personagem dizia respeito. Estando os discípulos perto da aldeia para onde iam, Jesus fez de conta que seguia viagem. Pediram-lhe para ficar com eles. Ficou e tomou conta da casa e da mesa. Tomou o pão partiu-o, distribuiu-o e deixaram de O ver. O espanto: enquanto O viram, não O viram. Quando O não viram, reconheceram-no no gesto eucarístico.
      Este é um verdadeiro conto exemplar. Jesus Cristo é o clandestino da vida humana. Não damos por Ele, mas Ele anda sempre connosco. A celebração da Eucaristia implica uma ponte entre o quotidiano e a celebração. Mas sem o acolhimento do desconhecido não acontece nada. Certamente que Jesus não tinha uma forma especial de partir pão. Mas é Ele que é o pão da vida. A celebração semanal da Eucaristia serve para não perder a memória de Jesus, a transformação do presente e a abertura à esperança.
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público,15. 04. 2018


[1] José Mattoso, Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval, Círculo de Leitores, 2013
[2] Cf. Padre Anselmo Borges, O que é ressuscitar?, DN 06.04.2018
[3] Klaus Schwab, A Quarta Revolução Industrial, Lenoir/Público, 2017
[4] Lc 24, 13-35 

08 abril 2018

EVANGELHO SEGUNDO O PAPA FRANCISCO

       1. Um dos fenómenos mais característicos do catolicismo do século XX foram os movimentos da Acção Católica. Paulo Fontes estudou o seu papel na criação de verdadeiras elites, em Portugal[1]. Para a hierarquia eram o seu braço estendido. Chegavam onde ela não conseguia entrar. Os jovens eram desejados, encorajados, mas a sua criatividade estava limitada pelo mandato que os dirigentes recebiam dos bispos. Eram um laicado super controlado. Daí, os mil conflitos que os assistentes eclesiásticos, correias de transmissão, tinham de saber gerir até onde fosse possível. Que Deus sabe escrever direito por linhas tortas é um aforismo português. Teve muito que fazer. Se a hierarquia perdeu os jovens, e muitos se afastaram da prática religiosa oficial, o Papa Francisco não se resignou a essa debandada, aos vencidos do catolicismo.
        Na abertura da reunião pré-sinodal dos jovens[2] (19.03.18), o Papa não repetiu as asneiras controladoras do passado. Nem cedeu à ideologia aduladora da juventude, de palmadinhas nas costas. Para ele, a juventude não existe. É uma abstracção. Existem os jovens, histórias, rostos, olhares, ilusões. Dizer que importa escutá-los e dialogar, já se sabe. O Papa não tem jeito para conversa fiada. Resolveu, com o seu comportamento e o seu discurso alterar, radicalmente, o relacionamento da Igreja com os jovens. Dados os limites desta crónica, terei de me contentar com algumas passagens e um convite à leitura integral do seu atrevimento.
        2. Bergoglio conhece o terreno que pisa: «Há quem pense que seria mais fácil manter-vos à distância para não se sentirem provocados por vocês. (…)
Os jovens devem ser levados a sério! Parece-me que estamos rodeados por uma cultura que, se por um lado, idolatra a juventude, por outro, impede que os jovens sejam protagonistas. É a filosofia da maquilhagem. As pessoas procuram pintar-se para parecerem mais jovens, mas não deixam crescer os jovens. Isto é muito comum. Porquê? Porque não querem ser interpelados.
Vocês são marginalizados da vida pública normal e obrigados a mendigar ocupações que não lhes garantem um futuro. Não sei se isto acontece em todos os vossos países, mas em muitos... Se não erro, a taxa de desemprego juvenil aqui na Itália, dos 25 anos para cima, é de cerca de 35%. Noutro país próximo da Itália, é de 47% e noutro ainda, mais de 50%.
O que faz um jovem que não encontra trabalho? Adoece. É a depressão. Cai no desespero, nas dependências, suicida-se. Devemos reflectir: as estatísticas do suicídio juvenil estão todas alteradas. Ou se torna rebelde, mas é uma forma de se suicidar. Ou apanha um avião e vai para outra cidade que não quero mencionar e alista-se no EI[3] ou num desses movimentos guerreiros. Pelo menos a vida tem sentido e terá um ordenado mensal. Isto é um pecado social! A sociedade é responsável por isto. Mas eu gostaria que fossem vocês a dizer as causas, os porquês e não digam: “mas se eu nem sequer sei porquê”. Como vivem este drama? Saber o que pensam ajudar-nos-ia muito. É verdade que são construtores de uma cultura, com o vosso estilo e com a vossa originalidade. (…)  Queremos este espaço do Sínodo para conhecer e participar nessa vossa cultura».
    3. O Papa Francisco lança um desafio: « Precisamos de ousar novos caminhos. Não se assustem: ousar novos caminhos, mesmo correndo riscos. Um homem, uma mulher que não arrisca, não amadurece. Uma instituição que faz escolhas, sem arriscar, permanece criança, não cresce. Arrisquem, acompanhados pela prudência, pelo conselho, mas vão em frente. Sem arriscar, sabem o que acontece a um jovem? Envelhece! Vai para a reforma aos 20 anos! Um jovem envelhece e também a Igreja envelhece. Digo isto com sofrimento. Quantas vezes eu encontro comunidades cristãs, até de jovens, mas velhas. Envelheceram porque tiveram medo. Medo de quê? De sair, de ir rumo às periferias existenciais da vida, de ir onde se joga o futuro. Uma coisa é a prudência, que é uma virtude, mas outra é o medo. Precisamos de jovens, pedras vivas de uma Igreja com o rosto jovem, mas não maquilhado, como disse: não rejuvenescido artificialmente, mas reavivado a partir de dentro. Vocês provocam-nos a sair da lógica do: sempre foi assim. Essa lógica é um veneno. É um veneno doce, porque te tranquiliza a alma e te deixa como que anestesiado e te impede de caminhar.
     Sair da lógica do sempre se fez assim, para viver de maneira criativa no sulco da autêntica tradição cristã. De modo criativo. Eu, aos cristãos, recomendo que leiam o Livro dos Actos dos Apóstolos: a criatividade daqueles homens. Aqueles homens sabiam ir em frente com uma criatividade que se nós fizermos a tradução para o que significa hoje, ficávamos assustados! Vocês criam uma cultura nova, mas estejam atentos: esta cultura não pode ser “desenraizada”. Um passo em frente, mas preservar as raízes! Não voltar às raízes, porque se acaba por ficar enterrado: dá um passo em frente, mas sempre com as raízes. As raízes — isto, desculpem, é do coração — são os velhos, são os idosos bons. As raízes são os avós. As raízes são aqueles que viveram a vida e que são afastados por esta cultura do descartar, já não servem, rua! Os idosos têm este carisma de conservar as raízes. Falem com eles. Mas o que hei-de dizer? Tenta!
     Recordo-me de uma vez, em Buenos Aires, a falar com os jovens, disse: “Porque não vão a uma casa de repouso tocar viola para os velhinhos que lá estão?” Mas, padre... Vão só uma hora. Ficaram mais de duas! Não queriam sair, porque os velhinhos estavam assim, um pouco adormecidos, ouviram tocar viola, acordaram todos e começaram a falar. Os jovens ouviram coisas que os comoveram.
     O profeta Joel diz isto muito bem. Para mim esta é uma profecia de hoje: «Os idosos vão sonhar e os jovens profetizar». Nós precisamos de jovens profetas, mas estejam atentos: nunca serão profetas se não tiverem em conta os sonhos dos mais velhos e se não forem fazer sonhar um velhinho que está ali triste, porque ninguém o ouve. Fazei sonhar os mais velhos e estes sonhos vão-vos ajudar a ir sempre mais longe[4]. Lê isto, far-te-á bem. Deixai-vos interpelar por eles.
      A Páscoa ainda não acabou e os sonhos também não.
      Frei Bento Domingues, O.P.
      in Público 08.04.2018


[1] Cf. Paulo Fernando de Oliveira Fontes, Elites católicas em Portugal: O papel da Acção católica (1940-1941),Fundação Calouste Gulbenkian, 2011
[2]  Uma Igreja que não arrisca envilhece,L’ Osservatore Romano, 22.03.2018
[3] “Estado Islâmico”
[4] Joel 3, 1. 

01 abril 2018

FOI MORTO, MAS ESTÁ CADA VEZ MAIS VIVO!

       1. Quando alguém diz «aquele não é bem acabado», está a falar de si próprio e dos outros, porque o ser humano nunca está bem acabado. Não sabemos quem somos, pois, o que seremos é-nos desconhecido. Não somos só o passado nem só o presente, mas o futuro e esse é filho da esperança. A esperança tem muitos nomes. São frequentes as sondagens de opinião que tentam conhecer os desejos, as espectativas e as esperanças de cada um. Não é novidade nenhuma saber que todos desejam ser felizes. Varia muito, no entanto, o que cada pessoa entende por felicidade. A expressão antiga diz bem a nossa condição animal: «haja saúde e coza o forno». É saudável que todos desejem melhorar as suas condições de vida, avançar na carreira como forma de auto-estima, para além do interesse monetário. Mesmo se o dinheiro não der felicidade, dá muito jeito. Muita gente espera a vida inteira o euro-milhões. O Papa Francisco contenta-se com pouco, mas deseja para todos os três Ts, como forma mínima de dignidade: tecto, trabalho e terra. As pessoas gananciosas, para satisfazer os sonhos de riqueza, saltam por cima de tudo e de todos. A lista dos mais ricos de um país ou do mundo não é muito grande. Grande é a distância entre os poucos loucamente ricos e os muitos loucamente pobres e miseráveis. Mas não tem de ser assim.
Conta-se que, quando João XXIII chegou ao Vaticano, perguntaram-lhe: «quantas pessoas trabalham aqui?» «Mais ou menos metade»! A sua primeira medida foi a de aumentar os salários mais baixos, tendo em conta a situação familiar de cada um. Quando expôs esta medida ao gestor financeiro do Vaticano, este disse que era o caminho para a bancarrota. «Não me parece nada, porque desci todos os salários altos. As despesas são as mesmas»[1]. Tinha sido, aliás, a recomendação de S. Paulo. É tudo gente, como Jesus Cristo, que nada sabem de finanças, no dizer do nosso Fernando Pessoa.
As capacidades científicas e técnicas estão sempre a aumentar, mas raramente servem o desenvolvimento equilibrado dos povos. A ciência e a técnica andam mais depressa do que a ética e a sabedoria. A tendência é a concentração de poderes globais de dominação económica, política e bélica.
A minha ignorância, acerca dos efeitos bons e menos interessantes das realidades e das promessas da inteligência artificial, do mundo da robótica, volta a recomendar a leitura de A Quarta Revolução Industrial[2]. Se os seres humanos puderem ser libertados do mundo aborrecido de tarefas aborrecidas por essas novas criaturas, bem-vindas sejam. Se vierem para mandar em nós, agradeço que os seus inventores se reformem quanto antes.
2. Aos mais velhos foi-nos dado viver um tempo em que se disputavam desejos de um mundo novo. Se Teilhard de Chardin pensava que o mundo pertenceria a quem lhe desse a maior esperança, a Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, gostou da ideia: «podemos legitimamente pensar que o futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações vindouras razões de viver e de esperar»[3].
Muitas pessoas deliciavam-se com o belo e terno poema de Péguy, no qual, Deus não se espanta nem com a fé nem com a caridade. Só a esperança o comove, essa que todas as manhãs nos diz: bom dia![4].
O filósofo marxista, Ernest Bloch (1885-1977), elaborou a célebre obra O princípio esperança, uma autêntica enciclopédia sobre os sonhos de uma vida melhor. Influenciou a teologia protestante e católica, a partir dos anos 60 do século passado. As perguntas do filósofo são as de sempre: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?
Não admira que tenham sido as utopias sociais, económicas, políticas e culturais que marcaram o Concílio Vaticano II e animaram, sobretudo, os grandes debates das teologias do Terceiro Mundo.
3. Georges Bernanos, um grande romancista católico (1888-1948), que nos deixou obras extraordinárias, não era ingénuo: «para reencontrar a esperança é preciso ter ido além do desespero. Quando se vai até ao fim da noite, reencontra-se uma outra aurora»[5]. Estava, nitidamente, marcado pelo percurso do próprio Jesus de Nazaré. Este não anunciou, apenas, a alegria de que, finalmente, o Reino de Deus estava próximo. Tudo o que dizia e fazia era já a pura gratuidade do Amor em acção. Os fiéis ao mundo velho condenaram-no. Acabou na cruz gritando: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Parecia o fim, mas não era.
O estilo do Apocalipse, o último livro da Bíblia, é suficientemente surrealista para alertar e consolar as Igrejas cristãs perseguidas, umas muito mais fervorosas do que outras.
Nas cartas às Igrejas da Ásia, o autor do Apocalipse apresenta Jesus Cristo como a Testemunha fiel (o mártir), o Primogénito dos mortos (o ressuscitado). Conta que João, «vosso irmão», encontrando-se na ilha de Patmos, movido pelo Espírito, ouviu uma voz forte que lhe disse: escreve o que vês num livro e envia-o às sete Igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. Ao voltar-se para ver a voz que falava, a face dessa figura era como o sol quando brilha em todo o seu esplendor. «Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Ele, porém, colocou a mão direita sobre mim, assegurando: Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; estava morto, mas eis que estou vivo para sempre»[6].
S. Paulo atreve-se a dizer que, se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, anda a pregar em vão e vazia é também a fé dos seguidores de Cristo[7].
Na Carta aos Romanos, a ressurreição é postulado cósmico e existencial: «Estou convencido de que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que há-de revelar-se em nós. Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus»[8].
Quem nunca leu este capítulo, até ao fim, faça-o agora. Garanto que não ficará decepcionado. É evidente que Paulo escreveu há mais de 2000 anos. A escravidão e a corrupção do mundo em que vivia, hoje, têm novos rostos e novas vítimas. Repetem-se as denúncias de que estamos a globalizar a destruição do nosso planeta, quando temos todos os meios para fazer dele um paraíso, novos céus e nova terra[9].
Se estamos mortos, ressuscitemos!
Boa Páscoa.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 01. 04. 2018


[1] Cf. Henri Fesquet, Fioretti do Bom Papa João, Morais Editora, Lisboa 1964.
[2] Klaus Schwab, A Quarta Revolução Industrial, Público/Levoir, 2017
[3] Gaudium et Spes, nº 31
[4] Le porche du mystère de la deuxième vertu, in Oeuvres poétiques complètes, Gallimard, 1948, pp.169-175
[5] La liberté, pour quoi faire?, Gallimard, 1953, p. 14
[6] Ap 1
[7] 1 Cor 15
[8] Rm 8 
[9] Ap 21