17 maio 2015

Não é preciso ir à “Terra Santa”

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Quem se sentir desafiado por Jesus Cristo não deve ignorar que, para além da sua experiência vital e do conhecimento afectivo, tem de recorrer também aos estudos que ajudam a ler os escritos do Novo Testamento (NT) e os ziguezagues da sua influência, ao longo dos séculos. A não ser que se aposte na preguiça piedosa: quanta mais ignorância, mais devoção.

Os resultados da investigação histórica e os frutos da hermenêutica das configurações simbólicas, legadas pelas primeiras gerações cristãs, não devem servir apenas para compor as estantes das bibliotecas das faculdades de teologia.

O seu estudo livre e rigoroso será sempre o melhor remédio contra a manipulação de algumas censuras eclesiásticas, feita em nome da salvaguarda da fé. Só é possível acreditar, de modo decente, interpretando e dialogando com outras interpretações. Como já disse nestas crónicas, a defesa da tradição cristã não se faz com os métodos das indústrias de conserva. É vitalizada no confronto e no diálogo com os desafios de cada época, na diversidade dos povos, a partir dos guetos sociais e culturais criados pelos interesses financeiros e económicos da nova desordem do mundo.  

Segundo o exegeta Xabier Pikaza, neste momento, a preocupação desses estudos deslocou-se da problemática do Jesus da história e do Cristo da fé para a investigação das origens do cristianismo: como surgiu a Igreja e qual o seu sentido? Não está centrada apenas no Nazareno, ocupa-se cuidadosamente dos seus primeiros seguidores. Aqueles que nos deram a conhecer o Mestre também precisam de ser conhecidos.

S. Lucas escreveu a sua obra entre os anos 90 e 100 d.C.. De origem pagã, mas talvez prosélito judeu, conhecia a Bíblia Grega, a dos LXX. Foi o primeiro autor cristão a apresentar a história de Jesus e do seu movimento, segundo os modelos judeu e helenista [1], sendo, também, o primeiro a interessar-se pela identidade social da Igreja e pelo lugar que ela ocupa na história, como movimento messiânico. Não tenta mostrar, em primeiro lugar, como é que as coisas se passaram. Interessa-lhe fazer entender a perspectiva da missão de Paulo que desembocou em Roma, capital do Império.

Sobre este fundo, destaca os dois polos da sua obra, o judaico e o helenista ou romano. O judaico mantem-se como raíz, pois constitui a origem e o destino israelita de Jesus e o princípio da Igreja em Jerusalém [2].

O polo romano constitui o enquadramento final e definitivo da Igreja que chegou a Roma e onde Paulo estava preso, mas anunciava abertamente o Evangelho. Esta perspectiva é muito sugestiva, mas exclui as Igrejas da Síria e da Ásia Menor [3].

No desenho deste cenário, Lucas idealiza e destaca as origens da Igreja em torno de Pedro e dos Doze, quando de facto, como se sabe desde o princípio, a origem real das igrejas ou comunidades foi muito mais ampla e plural.

Se as outras grandes “testemunhas” do NT (Marcos e Mateus, Paulo e João…) não precisaram de escrever uma história da Igreja foi porque, do seu ponto de vista, ela já estava incluída nas narrativas dos seus Evangelhos.

2. Xabier Pikaza chama a atenção para uma obra original de “desconstrução” do segundo livro de Lucas, os Actos dos Apóstolos (Act), feita por um destacado investigador espanhol [4] que se tornou uma autoridade na interpretação das origens cristãs.

Esta desconstrução pôs em causa a visão mais clara do nascimento e expansão da Igreja que tínhamos. Começa-se a saber, agora, que essa obra não conta a história da Igreja primitiva. É uma interpretação muito particular.  Lucas construiu uma tese. Desconstruindo essa interpretação, recuperam-se possíveis materiais mais antigos e valorizam-se outras fontes do NT (Paulo, tradição evangélica, etc.). Talvez se torne possível reconstruir melhor a história das igrejas do princípio e de forma mais ampla.

Neste livro, há personagens importantes que dominam, por algum tempo, a trama deste “romance” (os Doze e Pedro, os helenistas e Estêvão, Filipe, Tiago…), mas acabam todos por ficar em segundo plano. Actuam por um momento e, cumprida a sua missão, desaparecem. Quem garante a unidade e a continuidade da Igreja é a acção do Espírito Santo que a vai conduzindo de Jerusalém a Roma. O grande protagonista desta obra é o Espírito Santo.

3. Cumpriu-se a promessa: Recebereis a Força do Espírito Santo, que virá sobre vós. Sereis, então, minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra. Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem o ocultou aos seus olhos [5].

Cumpriu-se a promessa, em parte. A promessa não era colocar os discípulos pasmados a olhar para o céu: Jesus agora está com o Deus que está com todos em todo o mundo. Não adianta ir procurá-lo à Terra Santa, terra da violência sacralizada.

O segredo da simbólica da Ascensão é o Pentecostes, uma Igreja de saída que o Papa Francisco veio acordar. Convite para o próximo Domingo.

Público, 17.05.2014

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1  Act 1 1-4
2  Act 1-15
3  Act 28
4  Senén Vidal, Hechos de los apóstoles y orígenes cristianos, Sal Terrae, Santander 2015.
5  Act 1, 8-9

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