28 setembro 2014

Convidados para jartar, proibidos de comer (2)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Aconselharam-me a ter cuidado com o modo como são abordadas as problemáticas levantadas pelo Sínodo sobre a Família, pois a Igreja não pode dar a imagem de que tanto abençoa casamentos como divórcios ou recasamentos.       
Observação sábia. Não me parece, no entanto, que nos encontremos perante esse perigo. Receio algo diferente: que o descuido dos católicos com a significação da complexidade do que está acontecer possa levar à indiferença, à banalização ou a diagnósticos e remédios que matam.
As religiões são expressões públicas e sociais da fé. O legalismo e o ritualismo tendem a envenenar a sua vida concreta. Chegam a querer substituir-se à liberdade de Deus e à consciência humana. A lei e o ritual pretendem traçar o caminho a Deus e aos seres humanos: ou passam por ali ou não passam.      
Jesus rompeu com essa concepção fundamentalista. O encontro de Deus connosco não segue apenas nem principalmente o traçado das cerimónias do culto. O serviço desinteressado dos mais necessitados é o seu  teste inequívoco (Mt 25, 34-38). O próprio catolicismo precisa de ser continuamente evangelizado.
Sendo esta a realidade cristã, para que perder tempo com os rituais litúrgicos? Talvez porque somos humanos.
2. Tomás de Aquino, no comentário à primeira carta de S. Paulo aos Coríntios (c 15), sobre a ressurreição, tem uma posição arrepiante para os espiritualistas: a salvação da minha alma não é a minha salvação, pois a minha alma não é o meu eu (anima mea non est ego).  
Ao dizer isto não tenta oferecer uma explicação da vida depois da morte, da qual não sabe nada. Parte da convicção de que a morte não pode ser a última palavra do itinerário humano. A salvação não pode ser entendida como a reanimação de um cadáver.         
O ser humano é uma viva corporeidade espiritual e um espírito corporal. São duas dimensões de uma única e mesma realidade. Esta perspectiva recusa qualquer dualismo, pois não se trata de um anjo caído no mundo. Numa óptica cristã, a expressão “salvação das almas” tem inconvenientes antropológicos, cristológicos e litúrgicos insuperáveis. As celebrações sacramentais implicam uma corporeidade sensitiva e expressiva marcada pela cultura e pela história. A inculturação litúrgica não é um luxo. É uma condição de verdade.         
Nos debates do seu tempo, acerca da definição dos sacramentos cristãos, Tomás de Aquino inscreveu-a no vasto mundo da simbólica, em todos os seus registos. A diminuição da consistência sensível dos signos sacramentais é um atentado à sua significação divina e humana. A sua primeira eficácia depende da capacidade de evocação - uma exterioridade que acorda para uma interioridade -, para um acontecimento de graça, de transformação da vida. O enfraquecimento da densidade simbólica é meio caminho andado para a mecânica da magia: faz-se o truque e acontece.
A celebração dos sacramentos implica uma tríplice significação: a evocação de um acontecimento do passado, a sua eficácia presente e a abertura a um futuro sem clausura. Na Eucaristia, o sacramento dos sacramentos, quando lemos as narrativas evangélicas, começamos sempre por dizer: Naquele tempo. Não é para nos instalar no passado, mas para o confrontar com o nosso presente. Não temos de resolver questões de há dois mil anos, mas perguntar: que haverá, no que aconteceu há dois mil anos, que nos possa ajudar a desassossegar o nosso presente?
Temos a ideia de que o passado passou e acabou. S. Tomás, ao abordar os mistérios da vida de Cristo, perguntava: como poderão esses acontecimentos salvar o nosso tempo? A resposta tem sentido: Jesus estava completamente na onda de Deus e, por isso, a sua intervenção histórica, o amor que a percorria, atinge todos os tempos e lugares.  
3. Tantas voltas para quê? No Tablet (1), o cardeal Walter Kasper, é confrontado com o acesso dos católicos recasados à comunhão eucarística. Sabe muito bem que há situações diferentes, mas o que, em última análise, deve contar nas atitudes de toda a Igreja é a misericórdia. Não está a dizer nada de novo, não só do ponto de vista bíblico, como na sistematização teológica. A misericórdia efectiva é o que de melhor podemos dizer de Deus (2)
Todos estão de acordo que a simbólica da Eucaristia é a da refeição partilhada. Não há quem negue que o sacramento da Eucaristia, do princípio ao fim, é a maior celebração da misericórdia, do perdão, da reconciliação. Na própria consagração do vinho diz-se, explicitamente: Tomai, todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim.  
Como esquecer a memória das refeições de Jesus com os classificados como pecadores (Mc 2, 15-17; Mt 9, 10-013; Lc 5, 29-32)?
Surge a interrogação: Porque come ele com os publicanos e com os pecadores? Ouvindo isto, Jesus responde: Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os doentes. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores. Ironia divina.
Continuaremos.

Público, 28.09.2014



(1) The case for mercy, Jornal The Tablet, ed. de 20 de Setembro, entrevista mensal
(2) Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, 21, 3

21 setembro 2014

Convidados para jantar, proibidos de comer (1)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. No contexto da preparação do Sínodo dos Bispos, convocado para o Vaticano pelo Papa Francisco, a realizar de 5 a 9 de Outubro, sobre os desafios pastorais da família no contexto da evangelização, é normal que se tenham intensificado, nos diferentes continentes, os confrontos de tendências pastorais e teológicas sobre os antigos e novos modelos de família. Na realidade, desde o Vaticano II, não houve pausa nas controvérsias sobre as implicações da celebração católica do casamento. Não serão extintas no próximo Sínodo dos Bispos. O Papa Francisco não pode nem deve fazer tudo sozinho e tem de contar com os pedregulhos que os adversários da sua orientação lhe colocaram e colocam no caminho.

Não estamos na situação dos primeiros cristãos. Eles julgavam que o fim do mundo estava mesmo a chegar, como se pode ver nas cartas de S. Paulo aos Tessalonicenses. Os próprios textos do NT acusam uma certa evolução acerca do casamento, pois as comunidades cristãs tiveram de responder a desafios que Jesus não pode nem podia humanamente prever. Para lhe serem fiéis tiveram de inovar.
Por outro lado, se a identidade cristã da família não tivesse nada a ver com a pluralidade de mundos em mudança e tivesse sido configurada na eternidade, de uma vez para sempre, nem sequer seria precisa tanta despesa na preparação, nas viagens e na estadia, em Roma, dos 253 participantes dessa Assembleia, que continua mais representativa da hierarquia eclesiástica do que dos fiéis.
     
2. O próprio Jesus nasceu na história de uma família com a qual nem sempre teve uma relação tranquila. A esse respeito, as narrativas de S. Marcos sobre a família de Nazaré são pouco piedosas.         

Depois do cenário da constituição dos Doze para a pregação, Jesus voltou para casa. A multidão era tanta que os familiares nem se podiam alimentar. Perante esse facto, “os seus saíram para o deter, dizendo, ele está louco”.    

Chegaram os escribas, os intérpretes da Lei de Moisés, confirmaram a sentença e manifestaram que era diabólica a causa daquela loucura: Beelzebu está nele e “é pelo príncipe dos demónios que ele expulsa os demónios”.   

O final desse texto regressa, de forma insólita, à questão da sua família: “Chegaram então a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: a tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá fora e procuram-te. Ele, porém, perguntou: quem é a minha mãe e os meus irmãos? Percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor,  disse: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”(Mc 3).   

Sobre o ponto de vista familiar, a sua visita a Nazaré foi um desastre completo (Mc 6,1-6). Na narrativa de S. João diz-se, longamente, que os seus irmãos o gozavam e não acreditavam nele (Jo 7, 3-5). 

Existe um contencioso evidente entre Jesus, a sua família e a dos discípulos. Porque será? O seu propósito não era a destruição, mas a evangelização da família. Esta, grande ou pequena, não pode ser um mundo fechado. Não consta que este nazareno tenha constituído família, apesar dos romances que lhe atribuem. Ele pretendia algo que pode parecer uma loucura, mas que permanecerá como o verdadeiro sentido da história humana: somos todos filhos de Deus, chamados a fazer do mundo uma família de muitas famílias, de muitos povos e culturas. Somos todos irmãos.

3. Voltemos a assuntos caseiros que farão parte dos debates do próximo sínodo. A pergunta inevitável é esta: qual é o estatuto espiritual dos católicos que vivem em união de facto e dos católicos divorciados recasados?

Acerca dos que vivem em união de facto, há esperança que se venham a casar. Não há certeza de que não se venham a divorciar. Não está definido que os que vivem em união de facto não possam ser católicos e comungar.

Quanto aos divorciados recasados a controvérsia já conta com um grande dossier [1]. Houve a tentação de os considerar não católicos, de os situar fora da Igreja. João Paulo II não alinhou. Insistiu em que devem inserir-se na vida da Igreja, nas suas actividades e frequentar a Eucaristia.
Já ninguém se atreve a dizer que estão excomungados. Alguns configuram estratégias espirituais para que possam desenvolver uma profunda vida cristã e, na missa, comungarem espiritualmente, nunca, no entanto, aceder à comunhão sacramental. Mesmo em estado de graça divina, estão marcados por uma ruptura de uma aliança indissolúvel.

Há divorciados recasados que são convidados a seguir a espiritualidade desse caminho. Existem outros que não aceitam qualquer descriminação. Também encontramos teólogos e pastoralistas, bispos, padres e cardeais advogados das duas orientações. No Sínodo, terão de conversar. Em qualquer dos casos seria importante que os interessados tivessem uma palavra a dizer e uma consciência a seguir.
De qualquer modo, a participação numa refeição pertence à simbólica da Eucaristia. Quem aceitaria um convite para jantar, com a seguinte cláusula: vem jantar, mas olha que não podes comer?  
Pensemos nisto nas próximas Celebrações Eucarísticas.

Precisamos de voltar a este assunto.


[1]   Cf. Michel Legrain, Os divorciados na Igreja, Círculo dos Leitores, 1995; Fidélité et divorce, Lumière et Vie, nº 206, 1992; A. Mattheeuws, S.J., L’ amour de Dieu ne meurt jamais, La sainteté des divorcés remariés dans l’ Église, NRT 136 (2014) 423-444 ; B. Petrà Divorziati risposati e seconde nozze nella chiesa. Una via di soluzione, Assisi Cittadella, 2012

Público, 21.09.2014

19 setembro 2014

Frei Bento Domingues - Refletir o sagrado e descobrir o profano

Frei Bento Domingues, O.P. é frade dominicano na ordem dos pregadores. Nascido em Terras do Bouro, no mais remoto Portugal, desde criança foi pastor e às ovelhas leu trechos em latim de um livro que teve, emprestado. “E elas gostavam”, costuma contar. Na serra ouvia o eco da sua voz e seguia os ritmos da natureza, pela intuição dos cinco sentidos que até hoje, tem abertos e alerta.

Muito cedo descobriu a sua vocação, e na certeza da revelação e da fé se formou e ordenou dominicano, fazendo da proclamação do Evangelho, na liberdade de expressão e na caritas/amor absoluto a obra da sua vida. Agora que festejamos os seus 80 anos em homenagem e lançamento de dois volumes de antologia das mais de mil crónicas publicadas no Público, é também celebrada a sua tão singular figura.

Homem do campo e hoje andarilho na cidade, Frei Bento tem a malícia do dia a dia, a inteligência na adaptação às circunstância, o humor, o sentido crítico, a compaixão, a tolerância. Ele conhece os caminhos e os atalhos, usa os transportes públicos, evolui com facilidade pelos mais variados ambientes, de olhar sempre vivo e atento. Falando, escrevendo, investigando, debatendo, comunicando, Frei Bento Domingues não se esgota nunca. Disponível para os sacramentos do nascimento, do crescimento e da morte, celebrando a Eucaristia, pregando sobre as parábolas ou os profetas, em conversa casual de amigos ou circunstâncias gerais, ele discute as questões da atualidade, convive com crentes e não crentes e acredita na liberdade da democracia e no direito à opinião.

É teólogo estudioso do Antigo e do Novo Testamento, de textos apócrifos, conhecedor das várias religiões e das doutrinas dos doutores da Igreja, das vivências dos grandes místicos. É leitor de pensadores e filósofos, de autores universais e contemporâneos, de poesia. Acompanhar os textos de Frei Bento Domingues é refletir sobre o sagrado e descobrir o profano. É entender que Jesus Cristo é centro absoluto da presença de Deus no seu testemunho, na sua obra, na sua vida. É descobrir a sua devoção a Nossa Senhora.

Na missa de domingo de Cristo Rei, em 2010, anotei um fragmento da homilia de Frei Bento, quando citou Teillard de Chardin: “A criação está sempre a acontecer, toda a história está sempre a ser.”- para acrescentar que “Na nossa ação de construção do mundo há um clandestino, que é Jesus.” Penso que assim tudo se explica.

Leonor Xavier, 10 de setembro de 2014