29 junho 2014

Que trouxe de novo o Papa Francisco (1)

Frei Bento Domingues, O. P. 
 
1. Valerá a pena tentar uma resposta à pergunta do título deste texto? Creio que sim. Os incomodados com a intervenção surpreendente deste Papa tendem a desvalorizar, de modo displicente, a sua evidente novidade. Os deslumbrados com as suas prioridades, o seu método e o seu estilo tomam as espectativas do desejo como possibilidades reais de mudança na sociedade e da Igreja. No entanto, as mudanças reais e profundas não se decretam.


Importa, por isso, lembrar alguns momentos, embora de forma muito sumária, da história eclesial que precederam o Papa Francisco, para se poder avaliar o que continua e o que muda. Vivemos no presente, mas o olhar crítico sobre o passado é importante para discernir as opções que podem abrir ou fechar as portas ao futuro.

Em continuidade e ruptura com o século XIX, a primeira metade do século XX foi, no plano da Igreja Católica, um tempo difícil e admirável. Entre anátemas e surtos criadores, foi uma época das grandes redescobertas cristãs, através dos mais diversos movimentos: social, bíblico, litúrgico, teológico, missionário, ecuménico, laical, de arte sacra, de grandes escritores católicos, etc.. No entanto, acabou por ser também o de condenações das iniciativas mais inovadoras, no campo da evangelização do mundo do trabalho e das elaborações teológicas, em confronto com as expressões modernas da cultura.

Deveria fazer parte da formação dos Seminários e das Faculdades de teologia, o testemunho doloroso do mestre da eclesiologia do século XX, Yves Congar.*

2. Ortodoxia, heterodoxia, medo do comunismo, renovação das expressões do catolicismo, polémicas em torno das formas de resistência ao nazismo tornaram o pontificado de Pio XII, nos anos 40 e 50, extremamente complicado para o próprio e para o conjunto da Igreja. Depois dele, muita coisa mudou.

Para João XXIII, a atenção à luz interior, aos “sinais dos tempos”, às vozes que vinham de dentro e de fora do mundo católico, todas falavam da mesma urgência: o aggiornamento da Igreja. Apontou-o como objectivo da convocação do Vaticano II, assumindo o diálogo como método de trabalho - o que diz respeito a todos deve ser tratado por todos –, a recusa dos anátemas como pressuposto geral e nunca aceitar respostas elaboradas antes de estudar as perguntas. O humor e a firmeza no projecto de reforma da Igreja ajudaram-no a não alinhar com os “profetas da desgraça”. De modo gráfico, poder-se-ia dizer que a concepção da Igreja, antes do Vaticano II, era uma pirâmide hierárquica e a celebração da Eucaristia colocava o padre de costas para o povo.

Paulo VI era uma personalidade muito culta que nos deixou gestos e textos admiráveis. Era, porém, um eterno perplexo. Usando a terminologia simplista da época, dir-se-ia que, para não perder os tradicionalistas, acabou por perder os “tradicionalistas e os progressistas”. Por exemplo, na atormentada preparação da encíclica Humane Vitae - usada como uma doutrina definitiva, que ele não desejava – multiplicou as dificuldades, quando pretendia ser uma grande ajuda no discernimento da ética sexual e familiar. Diz-se que para não perder a minoria, acabou por perder a maioria.

João Paulo I foi Papa apenas durante um mês e ficou conhecido como o “Papa do sorriso”. Filho de gente pobre, o seu pai, um socialista, teve de imigrar várias vezes para ganhar o sustento da família. Manteve-se fiel a esse passado, era anti carreirista e recusou ser coroado Papa. Era a aliança da alegria, do bom humor e da coragem. A sua morte repentina adiou, sine die, a reforma da Cúria romana, o seu projecto.

João Paulo II foi o combatente. Veio da Polónia, da ditadura comunista, inimiga da democracia política. A hierarquia da Igreja, por razões de sobrevivência, não podia promover o aggiornamento do Vaticano II na vida interna da Igreja. Contribuiu para abalar o comunismo. Como Papa, percorreu o mundo católico várias vezes, acolhido com entusiasmo, teve um apoio mediático de grande vedeta. O cardeal alemão, J. Ratzinger, Prefeito para a Doutrina da Fé, encarregou-se de extirpar as turbulências teológicas pós-conciliares na Europa e no Terceiro Mundo e, de forma estrondosa, na América Latina. Karl Rahner, um dos teólogos mais importantes, chamou a esse tempo o inverno da Igreja.

Os últimos tempos de João Paulo II foram tristes, não apenas do ponto de vista físico, mas sobretudo pela imagem da Igreja revelada todos os dias nos meios de comunicação: a pedofilia no mundo eclesiástico e os escândalos em torno do Banco do Vaticano. Bento XVI esteve muito tempo na Cúria Romana. Eleito Papa, não podia ignorar o que se tinha passado e continuava. Não podia deixar de condenar tudo isso. Manifestou-se incapaz de enfrentar esse universo, bem mais difícil do que varrer o campo teológico. Demitiu-se.

3. Eleito Papa, o cardeal Bergoglio escolheu o nome de Francisco, o de Assis. Esta escolha encerra o seu programa. Optou pelos pobres nas diferentes periferias do mundo: geográficas, sociais, culturais e existenciais. Os seus gestos e as suas atitudes foram os seus primeiros e mais eloquentes discursos, como veremos nas próximas crónicas.

in Público, 29 Junho 2014

*Cf. Journal d’un théologien 1946 -1956, Cerf, Paris, 2001.

24 junho 2014

Encontro "Casados, Divorciados, Recasados"

Movimento Nós Somos Igreja - Portugal e Instituto S. Tomás de Aquino

17 de Maio, Convento de S. Domingos, Lisboa

Audio disponível


1ºpainel
Isabel Pereira e João Manuel Querido
Teresa Borges
Ana Mira Vaz e João Muñoz de Oliveira
Moderador: Frei Bento Domingues, O.P.

2º painel
Graça Martins e Paulo Melo
Mariana da Cunha e Gonçalo Moita
José Carlos Lima
Moderador: Frei José Nunes, O.P.

O NSI - PT pretende contribuir para o debate que tem sido lançado pelo próprio Papa Francisco e por outros elementos da Cúria relativamente à atitude da Igreja-instituição face aos católicos divorciados e recasados, questão que vai ser retomada no Sínodo sobre a Família.

As conclusões deste Encontro serão enviadas ao CEP (Conferência Episcopal Portuguesa).

22 junho 2014

Um Pecado Muito Original

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Perguntaram-me na Feira do Livro: será verdade que alguns biblistas católicos andam empenhados em dar cabo do pecado original? Respondi que já não era sem tempo, mas que eu não pertencia a essa tribo e que o melhor seria ir bater a outra porta. Após uns dedos de conversa, insistiram em conhecer a minha opinião!

Regressei, com esses interlocutores, aos meus tempos de catequese. Ensinaram-me que as crianças nasciam todas com a alminha suja do pecado original. Os pais deveriam apressar-se a baptizá-las, pois se elas morressem sem esse sacramento não podiam ir para o céu. Só o baptismo era capaz de apagar aquela mancha e abrir as portas do paraíso. Para o inferno não iam, pois não tinham cometido pecados pessoais para tanto castigo. Para o purgatório, também não. É o tempo de dolorosa purificação, com chamas de fogo, mas acaba por terminar no céu. Nesta espantosa geografia do Além estava tudo previsto. As criancinhas seguiriam para o limbo, onde não eram felizes nem infelizes, eram assim-assim.

Neste absurdo organizado, havia uma distribuição bastante lógica dos espaços. O que nunca batia certo era chamar pecado a uma herança considerada inevitável. Inevitável ou quase, pois havia uma excepção: por extraordinário privilégio de antecipação, a mãe de Jesus escapara a essa herança. Chama-se, por isso, a Imaculada Conceição.

Se Deus, porém, já tinha essa fórmula pronta porque não a usava em todos os casos, em vez do espetáculo cinzento do limbo?

É óbvio que pecar implica saber e querer fazer o mal, isto é, vontade livre. O que não podia ser atribuído a um recém-nascido por mais precoce que ele fosse. Chamar pecado a uma herança inevitável excede o mais elementar bom senso.

A nossa herança biológica, nem sempre é a mais favorável à construção de um futuro saudável. Perante algumas doenças, os médicos perguntam se não haverá nenhum caso na família. É frequente, aliás, ouvir dizer de alguém: tem a quem sair! Mas se há qualidades e doenças hereditárias, do ponto de vista ético não pode haver pecados hereditários. Para mim, era evidente que o chamado pecado original, de pecado ó tinha o nome. Mas como escreveu Paul Ricoeur: “nunca será demais afirmar o mal que fizeram às almas, ao longo de séculos de cristandade, a interpretação literal da história de Adão, primeiramente, e depois a confusão desse mito, tratado como história, com a ulterior especulação agostiniana do pecado original”.

2. Bento XVI participou, de algum modo, numa operação de sabotagem da teologia que mandava para o limbo as crianças que morriam sem o baptismo. Resultou. A 19 de Abril de 2007, o Cardeal W. Levada, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou um longo documento da Comissão Teológica Internacional que termina assim: depois de tudo examinado, dispomos de “fundamentos teológicos e litúrgicos sérios para esperar que as crianças que morrem sem baptismo serão salvas e gozarão da visão beatífica”.

Ensinei, durante muitos anos, a teologia de S. Tomás de Aquino sobre os Sacramentos. Defendi uma tese acerca da sua original concepção sobre a presença transformante do Acontecimento pascal na celebração actual dos sacramentos da fé cristã. Na última fase da sua teologia destacou, com vigor, que a vontade salvífica e universal de Deus não está dependente das peripécias dos sacramentos na Igreja. O documento proposto pelo Card. W. Levada, acima citado, apoia-se nessa intuição muito esquecida e, no entanto, absolutamente fundamental (Cf. S. Th. III. q.64,7 e par.).

A linguagem religiosa é polifónica. Tem muitas vozes, mas em todas as suas expressões e modalidades, o seu registo é sempre simbólico: aproxima o distante e distancia a falsa proximidade. O próprio Credo não é um registo de informações, mas uma paradoxal confissão de fé em Deus conhecido como infinitamente desconhecido, uma entrega no amor ao Amor que misteriosamente nos amou primeiro, fonte da nossa recriação contínua e que nenhuma verificação científica pode atestar. É de outra ordem.

3. O P. Carreira das Neves é um biblista infatigável. Ainda estava quente o seu recente livro sobre Lutero (Ed. Presença) e já nos presenteava com a Condição Humana sem Pecado Original (Ed. Franciscana). Passa em revista algumas das referências bíblicas mais congeladas, durante séculos, por leituras historicisantes (Cf.Gen.1-3;Sl.51,7; Rom 5, 12-16) e constrói uma espécie de antologia, exegética e teológica, sobre o chamado pecado original. Para mim, em não existir como se existisse, de modo omnipresente e desde sempre, consiste a sua grande originalidade.

M. Joseph Lagrange (1855-1939), fundador da Escola Bíblica de Jerusalém, gostava de referir o que observou muitas vezes no deserto: à frente de uma longa caravana de gentes e camelos caminhava um burro. Servia-se dessa analogia para dizer que na origem de muitas interpretações bíblicas e teológicas, está, por vezes, uma solene asneira.

Nenhum ser humano nasce no melhor dos mundos nem com os melhores genes, mas não tem que vir ao mundo com má reputação, eticamente caluniado.

in Público, 22.Jun.2014

15 junho 2014

Poderemos Viver Juntos?

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Esta interrogação, mansa e assustadora, faz parte do título de um livro de Alain Touraine que, infelizmente, ainda não perdeu actualidade [1]. Conheci bem o contexto da sua elaboração. Andava eu, na altura, a trabalhar na América Latina, em vários projectos, no meio e no rescaldo de ditaduras tenebrosas, confrontado com os inevitáveis debates em torno da revolução e da democracia.

Vivia entre entusiastas e adversários das comunidades de base e da teologia da libertação. Estava muito ligado a uma corrente que procurava abrir caminhos mais sensíveis à complexidade dos desafios locais e ao quadro internacional. Nas incertezas do tempo, os questionamentos deste sociólogo ajudavam a não perder de vista o essencial.

Isto acontecia já depois de ter participado em iniciativas, ora ousadas ora ingénuas, de teologia prática de inculturação do Evangelho em Africa – sobretudo em Moçambique – e fazendo eco de tudo o que se ensaiava e discutia noutros espaços eclesiais do continente – onde a questão da igualdade e da diferença tinha raízes coloniais, expressões neocoloniais e cruéis guerras civis, comandadas de fora e de dentro de cada país [2].

Evoco esse passado apenas para dizer que, ainda hoje, continuo perplexo perante a pergunta deste texto. A história da humanidade é, de facto, uma cruel história de desumanidade.

Conheci, desde muito novo, a estupidez da violência entre famílias e aldeias vizinhas que chegavam a expressões sangrentas nas feiras e nas romarias da minha zona. O meu pai, “Juiz de Paz”, era de uma paciência sem medida para conciliações e reconciliações sempre efêmeras. Tinha de abandonar, muitas vezes, os trabalhos do campo para ir servir de mediador em desacatos em aldeias bastante afastadas. Nunca quis aprender o “jogo do pau”, jogo aparente e treino real para ajuste de contas.

O que mais me impressionou, desde muito cedo, foram as narrativas de velhos conterrâneos que contavam, à lareira da minha avó, o que tinham passado, em França, na 1ª Grande Guerra. Por causa desses relatos, a minha mãe ofereceu todo o ouro que tinha para o monumento a Cristo Rei, por termos escapado à 2ª Grande Guerra Mundial!

2. Um conjunto de grandes estadistas conseguiu mostrar que, na Europa, era possível, em vez da guerra, construir um futuro de cooperação e de paz. Os dirigentes actuais não estão à altura dessa herança. Regressa a pergunta: iguais e diferentes - poderemos viver juntos?

Alguns souberam cooperar com o belicismo de G. W. Bush – entre eles, Durão Barroso – para levar mais guerra ao Iraque. Agora, perante a violência extrema, no Médio Oriente, a que chamaram “primavera árabe”, a única coisa que sabem patrocinar é o comércio das armas. Importa lembrar que João Paulo II foi dos raros dirigentes que denunciou a loucura do então presidente dos EUA.

O Papa Francisco foi em peregrinação à chamada Terra Santa. Todos louvaram o seu estilo, o seu comportamento e as suas propostas. Encorajou as autoridades a esforçarem-se para diminuir as tensões no Médio Oriente, principalmente na martirizada Síria, e a procurar uma solução equitativa para o conflito israelo-palestino. Convidou, por isso, o Presidente de Israel e o Presidente da Palestina, para irem ao Vaticano, a fim de rezarem juntos pela paz. Destacou que essa peregrinação à Terra Santa foi também a ocasião para confirmar na fé as comunidades cristãs martirizadas e manifestar-lhes a gratidão da Igreja inteira pela presença dos cristãos naquela região e em todo o Médio Oriente.

O convite do Papa foi aceite e cumprido, com a oração e plantação das pacíficas oliveiras no Vaticano. Entretanto, o governo de Israel não achou nada mais interessante para responder ao apelo do Papa do que alargar a ocupação de terras que lhe não pertencem, construindo mais e mais colonatos. O Presidente de Israel ficou bem na fotografia. Já está outro eleito. 

3. Hoje, a Liturgia católica celebra a festa da Santíssima Trindade. As milenares monstruosidades da guerra, sempre reeditadas, podem levar a concluir, na expressão de José Saramago, que o ser humano não tem conserto. Será defeito de fabrico? Sabemos que a própria investigação científica e o desenvolvimento tecnológico foram e são usados para o que há de pior.

Segundo a linguagem simbólica da Bíblia, o ser humano foi modelado à imagem de Deus invisível. É divina a eterna Fonte do nosso parentesco.

Jesus Cristo testemunhou, em expressões escandalosamente familiares, que Deus – limite de todos os conceitos - não é solidão. Quando Tertuliano cunhou a palavra trindade pretendia dizer que Deus é a misteriosa coincidência da máxima unidade na máxima diversidade, a insondável comunhão de relações pessoais de conhecimento e amor.

Graças a esta fonte do nosso parentesco, as tendências de dominação e rivalidade não podem ser reorientadas, sem uma cultura do desenvolvimento humano, nas suas relações múltiplas, que promova o gosto da unidade na diversidade.

A alternativa monoteísta, pura e dura, é excelente para a ditadura.

in Público, 15.06.2014

[1] Iguais e Diferentes - Poderemos viver Juntos? Piaget, 1998.

[2] Jaime Nogueira Pinto, Jogos Africanos, Esfera dos Livros, 2008

14 junho 2014

Jerusalém e Roma

Anselmo Borges

1 A política está em tudo mas não é tudo. A oração também pode ser força política. E condição essencial para a paz é a conversão interior, do coração. Por outro lado, a História não está pré-escrita em parte alguma e, por isso, é preciso construí-la e ao mesmo tempo ter a capacidade de se deixar surpreender por ela. Cá está: quem poderia supor há apenas um mês que seria possível o Presidente de Israel, Shimon Peres, e o Presidente da Palestina, Mahmoud Abbas, encontrarem-se no Vaticano para rezar? Mas o inesperado, o que se diria impossível, aconteceu.

Na sua visita à Jordânia, à Palestina e a Israel, inesperadamente, o Papa Francisco desafiou os dois presidentes para um encontro na "sua casa", no Vaticano, para rezarem pela paz. E essa oração histórica ocorreu nos jardins do Vaticano, no domingo passado, dia 8, com a presença de um quarto convidado, o patriarca ortodoxo Bartolomeu, de Constantinopla. O abraço dos dois líderes, palestiniano e israelita, com o Papa como testemunha, fica para a História. "Que Deus te abençoe!", disse Peres a Abbas, saudando-o. E Francisco: "Sim ao diálogo e não à violência; sim à negociação e não à hostilidade; sim ao respeito pelos pactos e não às provocações. Senhor, desarma a língua e as mãos, renova os corações e as mentes: Shalom, paz, salam".

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10 junho 2014

Por que não debater as questões fundamentais?

Frei Bento Domingues, o.p.

1. A primeira nota e a mais importante, porque teimamos em ser enganados pelo Governo português, consiste em chamar a atenção para a entrevista ao Jornal Público (11/5/2014) do ex-conselheiro económico do presidente da Comissão Europeia, Philippe Legrain.

Antes, porém, olhemos para o que o mesmo autor já tinha dito no seu livro European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess (2014): «Na primeira fase da crise, já foi suficientemente mau que os contribuintes tenham tido de salvar os bancos dos seus próprios países. Mas quando o problema alastrou a toda a UE, o que aconteceu foi que a zona euro passou a ser gerida em função do interesse dos bancos do centro – ou seja, França e Alemanha – em vez de ser gerida no interesse dos cidadãos no seu conjunto. O que é profundamente injusto e insustentável».

Recorto da entrevista referida – integralmente transcrita em Religione por A. Marujo e M. Pinto – a seguinte passagem: «A decisão de emprestar dinheiro a uma Grécia insolvente transformou de repente os maus empréstimos privados dos bancos em obrigações entre Governos. Ou seja, o que começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a sua vontade aos devedores.

«Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as políticas erradas. Já é mau demais ter-se um patrão imperial porque não tem base democrática, mas é pior ainda quando este patrão lhe impõe o caminho errado.

«Isso tornou-se claro quando em vez de enfrentarem os problemas do sector bancário, a Europa entrou numa corrida à austeridade colectiva que provocou recessões desnecessariamente longas e tão severas que agravaram a situação das finanças públicas. Foi claramente o que aconteceu em Portugal. As pessoas elogiam muito o sucesso do programa português, mas basta olhar para as previsões iniciais e para a dívida pública e ver a situação da dívida agora para se perceber que não é, de modo algum, um programa bem sucedido. Portugal está mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu. Portugal está mesmo em pior estado do que estava no início do programa».

Na entrevista ao Público (2/06/14), Adam Posen, presidente do Peterson Institute for International Economics, defende, com bons argumentos, que Portugal regressaria ao crescimento mais rapidamente e de forma mais sólida, se tivesse reestruturado a dívida. Não é possível crescer com a dívida actual.

2. É estranho que o remédio para a cura se revele um veneno, embora o médico insista em dizer que é o mais eficaz. A dívida aumenta até ao absurdo, mas parece que assim o Governo arranja fôlego para privatizar tudo, de tudo fazer bons negócios para empobrecer a população e concentrar as fontes e o destino de enriquecimento em poucas mãos. É o resultado do grande desígnio de ir além da troika. Quem não estiver bem não seja lamechas, emigre. É a melhor forma de diminuir o desemprego.
O mecanismo de alargar e aprofundar o abismo entre poucos muito ricos e a grande maioria cada vez mais pobre foi explicado por Thomas Piketty, no livro O Capital no Século XXI, muito referenciado em revistas e jornais em Portugal, durante o mês de Maio.

Diz-se que os economistas portugueses estão divididos acerca do livro. É normal que estejam divididos segundo os interesses que defendem. Dada a orientação, diz-se que os pobres nada têm a esperar dos gestores e economistas da Universidade Católica. Ainda bem que o Papa Francisco não foi formado na “economia que mata”. Se mata muitos, também engorda alguns muito depressa, os mais aptos, como consta da selecção das espécies na teoria da evolução.
É talvez uma calúnia levantada por aqueles que não percebem que a riqueza é um sinal de bênção e a pobreza, um sinal de maldição.

3. Acerca das eleições, parece que há muitos mortos nos cadernos eleitorais. Servem para agregar a abstenção dos mortos e dos vivos e dá sempre jeito para repetir que a abstenção nunca foi tão grande.
Nos partidos do Governo da maioria, votou a minoria. O maior partido da oposição revelou-se de perna curta. Os outros servem para mostrar o desprezo generalizado pela coligação que nos desgoverna, mas sem eficácia para criar uma alternativa. O PCP continua com uma visão tribal da política. Julgando-se o fiel da balança da esquerda, é acusado de se tornar um dos maiores obstáculos à constituição de uma maioria de esquerda não sectária. Até parece verdade.

Se é triste verificar que os maiores partidos políticos têm dificuldade em se reformar, é desolador ver que as novas iniciativas salvadoras propostas servem mais para criar ilusões do que soluções. Animam, quando muito, as manchetes dos meios de comunicação.

No momento em que escrevo ainda não se pode saber o resultado da luta interna – e não só – pela liderança do PS.

4. Numa longa e substanciosa entrevista ao Expresso (Revista 31.05.2014), Marcelo Rebelo de Sousa suspendeu, por instantes, o teatro dominical, para falar a sério.

5. Parece que o nosso país se está a tornar um Eldorado fiscal para estrangeiros (Visão,29.05 a 04.06 2014). Estes artifícios, sem ética, servem para viciar a política. A troco de vantagens imediatas, não se trabalha na justiça e na paz a nível local e universal.

6. Um engenheiro português do Google, engenheiro informático de Leiria, deixou Dublin e vem formar uma escola Speak Social, para pôr em contacto comunidades que vivem lado a lado, sem comunicação, por razões de língua e cultura (Publico,2/06/14). Excelente notícia.

7. A Comissão CAVITP (Comissão de Apoio à Vítima de Tráfico de Pessoas – organização das Congregações Religiosas Femininas) promoveu as Jornadas, de 1 a 3 de Junho 2014, em Lisboa, sobre o tema, Tráfico Humano: A Nova Escravatura, com a colaboração de Stefano Volpicelli (Roma) que apresentou uma visão global da actualidade sob o ponto de vista das práticas e das leis. O Protocolo das Nações Unidas – conhecido por Protocolo de Palermo e assinados por vários países – não está a ter os bons efeitos desejados. Os interesses globais dos ricos fazem de conta que o resto da população é de 2ª categoria. Pode ser escravizado. É a globalização da nova escravatura. Os participantes debateram esta realidade em Portugal, na legislação e nas práticas. Acontece que o tráfico humano, como tal, ainda não provocou a intervenção da Justiça, a nível de tribunais e cadeias, sobre os traficantes. Desgraçadamente, não é uma originalidade portuguesa.

8. O Papa Francisco fez aquilo que prega nas homilias das Missas matinais de Santa Marta: a Igreja só tem serviços para abrir as portas a toda a gente (Ostiários). Na peregrinação à chamada Terra Santa, uma peregrinação muito eficaz, abriu portas e muros entre cristãos, judeus e palestinos. Esperemos que, agora, não apareçam os zeladores de uma Igreja de portas fechadas, de israelenses e palestinos sem vontade prática de dois Estados soberanos e fraternos.

9. Saúdo a Newsletter N.º 1 (Jan/Mar 2014) do Policredos, Observatório da Religião no Espaço Público.

08 junho 2014

De que espírito somos?

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Temos mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja, sete Sacramentos, normas litúrgicas, Direito Canónico, tribunais eclesiásticos, dogmas definidos, burocracias nas paróquias, nas dioceses e na Cúria do Vaticano. Estando tudo previsto e regulamentado, porque será que há tantos católicos insatisfeitos, a começar pelo Papa Francisco, o mais irrequieto de todos? 

Não basta dizer que há reformas urgentes a fazer nas instituições da Igreja, que passa o tempo e nada acontece, porque estas não são razões suficientes nem toda a verdade.

Vamos por partes. Não é a multiplicação das instituições e das leis que resolve os impasses de uma sociedade. No âmbito cristão, foi essa uma percepção fundadora. Jesus de Nazaré cresceu e foi educado num ambiente marcado pelas infindáveis proibições para não violar a sagrada instituição do Sábado. Perante aquela obsessão, Jesus cunhou um aforismo célebre: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. O radicalismo de S. Paulo contra o primado da Lei é bem conhecido.

Como estamos na festa do Pentecostes, há logo quem sugira e com base em várias passagens do Novo Testamento: falta o Espírito Santo.

O abade cisterciense Joaquim de Fiore (1132-1202) concebeu uma interpretação da História em três eras ou idades que anunciava o reino da pura liberdade. As três idades correspondiam às três pessoas da Santíssima Trindade: a do Pai (Antigo Testamento), a do Filho e da sua Igreja (Novo Testamento) e a terceira seria o Advento do Império do Divino Espírito Santo, sem leis e instituições disciplinadoras da fé.

Nos Açores e na vasta emigração açoriana, as festas do Divino Espírito Santo ainda conservam marcas desse sonho de abundância de tudo pela igualitária partilha dos bens. Mesmo depois de condenado, o “joaquinismo” sobrevive em metamorfoses diversas. O Pentecostes, em clima cristão, evoca sempre o imprevisível, a desregulamentação, a divina generosidade.

2. Não tinha, no entanto, que ser assim. A palavra é uma simples transcrição do grego pentecostés, cinquenta dias depois da Páscoa judaica, comemorativa do dom da Lei no Sinai, embora nas origens fosse sobretudo uma festa agrícola, de alegria e acção de graças pelas primícias das colheitas. Evocava a Lei de Deus e as leis da natureza, obra do Criador.

Era uma celebração muito concorrida e reunia muitos judeus vindos de muitos países. S. Lucas teve, então, uma ideia genial. Aproveitou aquele cenário e alterou-lhe a significação: desatar o movimento cristão da estreiteza das amarras do judaísmo ortodoxo, a partir do próprio judaísmo. Vem tudo contado no começo do capítulo 2 dos Actos dos Apóstolos (Act.). É a inauguração de uma nova era, numa linguagem de fogo, que realiza o prodígio da máxima unidade no respeito pela pluralidade dos povos, das linguagens e das culturas, uma união que fecunda a diversidade. 

É o Espírito que tinha alterado o rumo da vida de Jesus de Nazaré, que irrompe na vida dos seus discípulos de forma espantosa. Aqueles inveterados calculistas – que, ainda há pouco, perguntavam a Jesus se era desta que iria restaurar a realeza em Israel – descobrem, de repente, o mundo todo por horizonte. Não para o dominar, mas para lhe testemunhar que a nova lei é a alegria de servir a esperança, na imprevisibilidade de cada situação.

Não se trata, apenas, do desenho literário de um sonho longínquo: os convertidos “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações. (…) Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um (Act.2, 42-46). O narrador insiste em que, devido à partilha dos bens “não havia necessitados entre eles” (4,32-36). 

3. Nos Actos, não há clivagem entre o espiritual e o material, a vida interior e as relações sociais. O sinal mais inequívoco da presença actuante do Espírito Santo é a partilha dos bens espirituais e materiais. Nunca haverá boa partilha de uns sem a partilha dos outros. O Papa, arreliado com as histórias em torno do Banco do Vaticano, disse numa das Missas matinais, em Santa Marta, que S. Pedro não tinha conta bancária. 

Não vamos pedir aos Actos uma receita para a gestão económica e financeira do mundo, da Europa ou de Portugal. Servem apenas para nos dizer que, do ponto de vista ético, as coisas não têm de ser irremediavelmente o que são. Podem ser diferentes.

Como é possível que Philippe Legrain – um ex-conselheiro de Durão-Barroso na presidência da Comissão Europeia – tenha revelado, numa entrevista a este jornal (Público 11/5/2014), que os resgates à Grécia e a Portugal serviram para salvar os bancos franceses e alemães, arruinando a vida de milhões de gregos e portugueses, e que tudo tenha continuado sem qualquer sobressalto político, sem consequências imediatas!?
A seguir ao teatro da gloriosa saída limpa, já nos acenam com ameaças de novo resgate. Quem nos resgatará de cenas tão tristes?

Só os inspirados pelo Espírito de verdade. Só esta nos libertará.

in Público, 08.06.2014

A entrevista de Francisco no avião

Pe Anselmo Borges

O primeiro obstáculo sou eu", disse o Papa Francisco, já no avião, de regresso ao Vaticano, depois da visita à Jordânia, à Palestina e a Israel. Estava a responder aos jornalistas, que lhe perguntaram pelos obstáculos na reforma da Cúria. Uma resposta com risos, mas também com ironia, pois ele sabe que o cardeal Maradiaga, que preside ao G8 cardinalício, disse recentemente, nos Estados Unidos, que há um cardeal muito conhecido que vai atirando ter sido "um erro" a eleição de Bergoglio e que há muitos, na Cúria e fora dela, que, ao perderem poder e privilégios, verrinam: "O que é que esse argentinozito pretende?" 

Francisco, que, sem receios, dá conferências de imprensa, foi acrescentando que nomeou esse Conselho dos oito cardeais, precisamente para estudar o sistema do Vaticano e reformar a Cúria, sendo um dos pontos-chave o económico, exigindo-se honestidade e transparência no banco do Vaticano. Já se fecharam 1600 contas e o assunto dos 15 milhões relacionados com o cardeal Bertone está a ser investigado. "É inevitável que haja escândalos, porque somos humanos e todos pecadores"; por isso, "as reformas têm de ser contínuas".

01 junho 2014

Francisco no Médio Oriente. "Conseguimos!"

por ANSELMO BORGES

Era uma viagem de alto risco. Acabou por ser uma viagem que os media mundiais chamaram de histórica. Francisco queria que a sua visita à Jordânia, à Palestina e a Israel fosse uma peregrinação. E foi, mas com imensas consequências políticas. Afinal, a política não é tudo, mas está em tudo. O que aí fica quer lembrar momentos significativos da viagem.

Na Jordânia, pediu "uma solução pacífica para a crise síria e uma solução justa para o conflito israelo-palestiniano". Referindo-se concretamente à Síria, lacerada por uma luta fratricida que dura há mais de três anos, com milhões de refugiados, atacou as empresas armamentistas e rezou pela sua conversão: "Que Deus converta os violentos, os que provocam a guerra, os que fabricam e vendem armas, e os torne construtores da paz!"

Defendeu, em Belém, "o direito à existência de dois Estados, gozando de paz e segurança". Na preparação da viagem, já houvera uma referência ao "Estado palestiniano". Ainda em Belém: "A incompreensão entre as partes produz divisões, sofrimentos e êxodo de comunidades inteiras." Aqui, certamente lembrou-se de que a Terra Santa está a ficar sem cristãos, pois no Médio Oriente já só representam 2%, quando há 50 anos eram 10%. E ousou um convite: "Senhor Presidente Mahmoud Abbas, neste lugar onde nasceu o Príncipe da Paz, desejo convidá-lo a si e ao Senhor Presidente Shimon Peres a elevarmos juntos uma intensa oração pedindo a Deus o dom da paz. Ofereço a possibilidade de acolher este encontro na minha casa, no Vaticano." Francisco renovou o convite em Tel Aviv. E Peres e Abbas aceitaram a iniciativa inédita.

A caminho da Basílica da Natividade, em Belém, surpreendeu, quando, ao passar junto ao muro erguido por Israel na Cisjordânia, conhecido como "o muro da vergonha", mandou parar o jipe em que seguia, ficando em oração durante alguns minutos, apoiando a mão e a cabeça no muro, um pouco à maneira do que fazem os judeus no Muro das Lamentações. Este gesto, que causou descontentamento em Israel, foi compensado com uma outra visita-surpresa, quando, a caminho do memorial do Holocausto, símbolo da "monstruosidade" humana, onde perguntou: "Como foste capaz, Homem, deste horror, o que te fez cair tão baixo?" e gritou: "Nunca mais! Nunca mais!", homenageou o memorial às vítimas israelitas dos atentados em Jerusalém. Com estes dois gestos, Francisco estava a dizer que não é com muros nem com o terrorismo que se constrói a paz. Como disse o padre D. Neuhaus, do Patriarcado Latino de Jerusalém, "Francisco tem o perigoso talento de dizer a verdade".

Em Jerusalém, Francisco e Peres clamaram em uníssono: "Não nos cansemos de perseguir a paz com determinação e coerência." O Papa: "Que Jerusalém seja verdadeiramente a cidade da paz, que corresponda à sua identidade, ao seu carácter sagrado e verdadeiro valor como tesouro para toda a humanidade. Que todos possam ter acesso livre aos lugares santos e participar nas celebrações."

E sucederam-se os encontros ecuménicos e inter-religiosos. Com o Patriarca ortodoxo Bartolomeu, assumiu a urgência da união de todos os cristãos, propondo "um novo modo" de exercer o primado papal, tendo talvez no horizonte a ideia de um primus inter pares (o primeiro entre iguais). Na Esplanada das Mesquitas, encontrou-se com o Grande Mufti, pedindo aos "amigos muçulmanos" um trabalho em conjunto pela justiça e pela paz. "Que ninguém instrumentalize o nome de Deus para a violência!" Depois do muro de Belém, rezou no Muro das Lamentações. E, num encontro com rabinos, um rabino proclamou: "Em Jerusalém, não deve existir mais ódio nem inimizade entre os irmãos."

E os três velhos amigos dos tempos de Buenos Aires - o rabino A. Skorka, o xeque O. Abboud e o agora Papa Francisco - abraçaram-se ali, junto ao Muro, e foi o grande abraço das três religiões abraâmicas. E Skorka, comentando o velho sonho em Jerusalém: "Conseguimos!" E Francisco regressou a casa, com a esperança fundada de em breve serem retomadas negociações sérias em ordem à paz.

in DN, 31.05.14

Corações ao alto

Frei Bento Domingues O. P.

1. A festa litúrgica da Ascensão, neste Domingo, é uma celebração de humor provocado pelo começo do segundo volume de uma obra atribuída a S. Lucas, os Actos dos Apóstolos (Act.), um livro de aventuras que seria uma tentação para a banda desenhada, se as leituras piedosas e convencionais não travassem a imaginação recriadora.

Na verdade, a grande pintura de Fra Angelico, Mantegna, Rembrandt, etc., não perderam o cenário criado por S. Lucas. O músico revolucionário do séc. XX, Olivier Messiaen, compôs L’Ascension, uma impressionante meditação sinfónica.

Este evangelista, no primeiro volume da sua obra, já tinha apresentado o que acontecera a Jesus de Nazaré, depois da sua impressionante ruptura com a ideologia e o método de austeridade de João Baptista.

É verdade que este tinha sido o seu mestre extraordinariamente admirado, a quem havia seguido com fervor e por quem fora baptizado, no rio Jordão, mas acabou por se dar conta que o moralismo era demasiado curto para a revolução que se impunha.

A experiência mística, depois do rito baptismal no Jordão, surgiu como uma iluminação que mudou completamente o rumo da sua vida. Já não conseguia rever-se no Deus da ameaça do seu antigo mestre, mas na Voz que o declarava um fruto do puro Amor.

Nunca posso deixar de sorrir quando alguns católicos trazem ou pedem para trazer água do rio Jordão para o baptismo dos filhos ou dos netos, como se ela fosse dotada de especiais virtudes. O futuro de Jesus não veio dessa água, mas de um banho no Espírito recriador do mundo, a essência do baptismo cristão.

O Evangelho segundo S. Lucas termina na viagem surrealista dos tristes discípulos de Emaús (Lc 24,13-34). São eles que explicam a um estranho e distraído forasteiro (o próprio Mestre) o que naqueles trágicos dias tinha acontecido, em Jerusalém, a Jesus, o nazareno. As mulheres tinham lançado o boato de que ele estava vivo, mas ao certo, ninguém o viu!

Nessa narrativa hilariante, não vêem o Mestre enquanto o vêem; quando o reconhecem, ele torna-se invisível. Lucas não escreve uma história do passado, mas o instante presente da fé dos discípulos de Jesus, sem termo à vista.  

2. O autor dos Act. reforçou o seu pendor surrealista. Depois da ressurreição, Cristo vive com os discípulos. S. Lucas recria cenários, qual deles o mais absurdo, para mostrar que a presença de Cristo nunca foi tão real, mas também nunca foi tão clandestina: uma presença sob forma de ausência e uma ausência sob forma de presença.

Para destacar esse paradoxo, o escritor sente a urgência em fazer entrar outro personagem em cena, realçando a proverbial  incapacidade dos discípulos em entenderem o Mestre, devido à obsessão pelo poder: “Estando reunidos perguntaram-lhe: Senhor, será agora que vais restaurar a realeza em Israel?”

Jesus mostra-se aborrecido e esgotado. Já não aguenta mais: recebereis a força do Espírito e sereis minhas testemunhas até aos confins da terra. Lucas cria logo um cenário radical: dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem escondeu-o!

Em vez de cumprirem a ordem de Cristo, ficaram pasmados a olhar para o céu, esquecendo a terra e a missão. No Evangelho de S. Mateus, referido na liturgia de hoje, o cenário não é muito diferente. Reuniram-se todos para a despedida, e quando O viram adoraram-no; mas não todos. Alguns continuaram com as suas dúvidas.

Jesus, o Ressuscitado, já não está para mais explicações. A única coisa que garante é que ficará sempre com eles até ao fim dos tempos e manda- -os em missão. Não andam por conta própria, mas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Jesus cansou-se, mas não foi para férias como certas fórmulas podem sugerir: sentado à direita de Deus Pai. Teria deixado tudo arrumado, uma igreja organizada para cumprir um mandato de há mais de 2000 anos. Pura ilusão! Jesus não criou um museu, nem ordenou os seus conservadores nem os cicerones, os que guardam o depósito da Fé e sabem o que lá existe e não existe. Os polícias da ortodoxia.

Uma interpretação dessas tem um pequeno inconveniente: esquece o Espírito Santo que desarrumou a vida a Jesus e que desarrumará a vida da Igreja, até ao fim dos tempos. O Espírito Santo não é propriamente um burocrata, mas disso falaremos no Pentecostes.

3. O papa Francisco não é Deus, não é Jesus Cristo, nem é ele a Igreja. Surgiu e foi logo interpretado como alguém apostado em enfrentar reformas, há muito adiadas: a da Cúria Romana, do Banco do Vaticano, do carreirismo eclesiástico, da atração pelo fausto e o seu exibicionismo e liquidar o crime de cobertura à pedofilia.

As reformas pontuais, urgentes, inadiáveis não bastam. É preciso abrir as portas da Igreja a todos e não engaiolar o Espírito. Entrar na alegria da criatividade do Evangelho de cristãos e não cristãos.

Na sua peregrinação à Terra dos conflitos mortais – Jesus Cristo também os conheceu – ninguém podia esperar ver o milagre dos muros a ruir, as armas a cair das mãos e todos envolvidos num grande abraço. O Papa, ao abandonar o calculismo político, não privilegiou nem cristãos, nem muçulmanos nem judeus. Ao ser tudo para todos, abriu portas para o futuro, a nossa morada.

Corações ao alto!

in Público, 01.06.2014