21 maio 2014

A Laura disse-me adeus

Não sei se os mistérios são silenciosos, mas a Laura é um mistério no seu silêncio. Não porque não queira falar mas porque não está habituada. Salvo erro, terá passado a infância num ambiente de poucas falas e como não consegue exprimir-se bem, fica calada. Apenas olha e sorri. O sorriso é agradável e o olhar amável. Uma canção cantada em espanhol diz que “olhos azuis são mentideiros”. Não sei se há nisto alguma verdade, em todo o caso não me parece que seja tanto assim, talvez a dificuldade esteja em saber ler o que dizem ou querem dizer os olhos azuis. É o que acontece com a Laura. Anda pela rua, as pessoas gostam dela, é tranquila e parece não precisar de mais nada além de alguma comida e roupa. Eu já a conhecia mas não sabia o seu nome. O Joaquim, que veio aqui arranjar umas coisas, ao sair para a rua é que disse: olha a Laura anda por aqui! Esta gaja não tem parança. Eu às vezes também uso a palavra gaja, mas à Laura não conseguiria nomeá-la assim. Nunca a vejo pedir nada, mas há sempre gente que lhe estende a mão a dar qualquer coisa. É engraçado ser ao contrário do que é costume. Ela agradece com dignidade sem vénias, o que me agrada. A quem poderei comparar a Laura na Bíblia? Não sei, mas entre a Rute e Maria Madalena penso que tem um pedacinho de muitas. Os sábios talvez me pudessem ajudar nisto, mas também não é muito importante. Prefiro fazer de outra maneira, meter a Laura na Bíblia e juntá-la a todas as outras. Há uns tempos falei um pouquinho com ela e vi que tem uma energia interior e uma lucidez que o pouco vocabulário que usa não consegue transmitir suficientemente. Depois disso deixei de a ver durante algumas semanas. Dizem que foi cuidar do pai, obeso e mal alimentado, doente no corpo e na alma. Não sei o que aconteceu ao pai, mas há dias quando ia a virar uma esquina vi um braço no ar. Fiquei muito contente, a Laura disse-me adeus. Fui ter com ela e percebi-lhe que tinha estado em Fátima e tinha gostado muito. Perguntei-lhe se gostava da nossa Senhora de Fátima e ela disse-me em poucas palavras que a nossa Senhora é só uma, tanto faz ser em Fátima como noutro lado qualquer, mas que, sim, gosta muito de nossa Senhora. Que é a mãe de Jesus e é muito importante. Armado em teólogo barato disse-lhe que Jesus é mais importante. E ela: eu bem sei que Jesus é mais importante, mas olha que uma mãe é quem nos pode ensinar melhor a conhecer um filho. Oh Laura, onde é que aprendeste isso? Não aprendi muito, tiro mais da minha cabeça. Quer-se dizer, eu aprendi algumas coisas com umas irmãzinhas que iam lá ao bairro, mas depois fiquei a tirar coisas da minha cabeça. Não perguntei que bairro era nem quem eram as irmãzinhas, às vezes fico meio aparvalhado no meio da vida. Talvez o Joaquim me soubesse dizer, mas não lhe vou perguntar para não o ouvir chamar gaja à Laura. Na verdade que importa o nome do bairro! Basta-me saber que às vezes passo pelo bairro da alma em que a Laura vive. Talvez um dia encontre por lá as irmãzinhas.

Frei Matias

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