27 abril 2014

Domingo de Canonizações

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Hoje é domingo de canonizações, de surpresas e decepções. Fizeram-me, a este respeito, uma pergunta estranha: será verdade que uma canonização envolve a infalibilidade pontifícia? Digo estranha porque, nas questões de ordem teológica, o que me preocupa, em clima cristão, é saber se um determinado acontecimento, atitude, gesto ou palavra servem a dimensão imanente e transcendente dos seres humanos, como criaturas de relação e de interajuda. Respondi que uns teólogos dizem que sim e outros dizem que não. Sabem tanto uns como outros. Estamos, portanto, em matéria opinável. Como a própria noção de infalibilidade tem pouco de infalível, é melhor não ligar muito a esse género de preocupações.

Além disso, o essencial da vida cristã não passa por aí e a Festa de Todos os Santos é muito mais inclusiva e democrática do que todos esses processos de levar gente aos altares. São, aliás, rápidos para uns, muito demorados para outros e impossíveis para quase todos. Preencher os requisitos previstos para obter esse diploma de santo, não é para qualquer um. Um bom currículo não basta. O júri que o avalia não goza de nenhuma garantia divina de imparcialidade.

2. Os produtos da hagiografia, feitos por encomenda ou por devoção, pretendem ser edificantes; os frutos dos incréus, nem sempre são modelos de crítica histórica, como pretendem.

Quanto a modelos, se podemos falar assim, no Ocidente ainda não apareceu nenhum mais interessante do que Jesus Cristo e aqueles que seguem os seus passos e recomendações: os que não procuram nem riquezas nem qualquer outro poder de dominação. Vem tudo muito bem explicado no Evangelho segundo S. Marcos e paralelos (10, 17-45).

Andavam os discípulos a discutir entre si os lugares que desejavam ocupar quando o Mestre, o líder, tomasse o poder. Jesus ia percebendo tudo e andava cada vez mais enjoado com todas essas conversas e segredos. Não reagiu logo. Deixou que eles tivessem a coragem de se manifestarem abertamente e aconteceu. Tiago e João, filhos de Zebedeu, abriram o jogo e pediram logo os primeiros lugares na hierarquia do governo. Jesus tentou dizer-lhes que não tinham entendido nada. Mas os dez, ouvindo isso, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Então o Mestre percebeu que aquela ambição era geral. Chamou-os e pôs tudo em pratos limpos: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam e são chamados Benfeitores. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele que, de entre vós, quiser ser grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”. 

Com o gesto do lava-pés aos discípulos, o Evangelista João deu o sentido a toda a vida de Jesus, antes, durante e depois da Páscoa. Indicou-lhes, para sempre, o papel da Igreja no mundo: não ajoelhar diante de nenhum poder (económico, financeiro, político ou religioso); ajoelhar apenas diante dos excluídos da mesa comum, os deixados à porta de tudo sem poder entrar!
                      
3. É esse o cânone cristão da santidade. O resto é apenas caminho para esse despojamento libertador. João XXIII deixou-nos uns apontamentos, para seu governo pessoal, com o propósito de reduzir tudo – princípios, directrizes, assuntos – ao máximo de simplicidade e de paz, com o cuidado de limpar em todo o tempo a sua vinha do que são folhas e ramos inúteis e onde brilhe, apenas, a verdade, a justiça e a caridade; sobretudo a caridade. “Qualquer outro sistema de actuação não é mais do que jactância e desejo de afirmação pessoal, que depressa se denuncia, se torna nociva e ridícula. (…) Todos os sábios do século, todos os santos da terra, incluindo os da diplomacia vaticana, que papel mais mesquinho representam, colocados à luz da simplicidade e da graça que emana deste grandioso e fundamental ensinamento de Jesus e dos seus santos!” 

Incomodado com o seu bom feitio, inclinado à condescendência e a descobrir o lado bom das pessoas e das coisas, sofre com o ambiente que o rodeia: “Qualquer forma de desconfiança ou de tratamento indelicado com alguém – sobretudo se se trata de deficientes, pobres ou subalternos -, qualquer dureza e irreflexão de juízo causam-me mágoa e íntimo sofrimento. Calo, mas sangra-me o coração. Estes meus colaboradores são uns magníficos eclesiásticos: aprecio as suas excelentes qualidades, estimo-os e merecem tudo. Mas sofro com o desacordo do meu espírito em relação a eles. Prefiro o silêncio, esperando que este resulte mais eloquente e eficaz para a sua educação. Não será isto debilidade?”

Seria longo explicar a razão de João XXIII ter surgido como uma espantosa surpresa para a Igreja e para o mundo: como foi possível, depois de Pio XII e de todos as condenações desde o séc. XIX, começar a dar a palavra a toda a Igreja, convocando o Vaticano II, aberto às outras Igrejas cristãs, às outras religiões, a todos os seres humanos de boa vontade? Apesar de todos os esforços para abafar essa revolução e para o esquecer, hoje, muitos se alegram e outros perguntam: afinal quem foi ele?

João Paulo II, quem o esqueceu? Para vergonha de todos temos o cardeal Bertone.

in Público, 27.04.2014

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