20 abril 2014

A Ressurreição da Igreja

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Não pretendo trazer para aqui a lista das significações que a palavra ressurreição tem na história religiosa e, particularmente, nas teologias cristãs. A ideia de insurreição contra os opressores, serviu a S. Paulo para destacar a vitória de Cristo sobre o pior e mais resistente dos inimigos, a morte, no tom de quem ganhou o desafio supremo e se ri da do fatal adversário: “morte, onde está a tua vitória, onde está o teu império? (1Cor 15).

Opto, este ano, por nomear uma questão recorrente e pouco atendida: a ressurreição da Igreja. Do ponto de vista histórico, foi a experiência de algumas mulheres que revelou aos discípulos, contra todas as evidências, que a morte não tinha sido a última palavra sobre a tragédia humana da Cruz. Por outro, as narrativas do Novo Testamento são, em parte, o fruto de um exame de consciência sobre a cegueira que impediu os Apóstolos de entender o sentido do percurso terrestre de Jesus de Nazaré.
Chamo aqui ressurreição da Igreja ao resultado das atitudes, dos gestos, das tomadas de posição e iniciativas que romperam, ao longo de 2.000 anos, com situações de decadência, de escândalos ou de marasmo e colocaram, de novo, as comunidades cristãs sob o impulso do Pentecostes. É um processo nunca acabado e, sob o ponto de vista local ou regional, estará sempre ameaçado pelo desleixo e pela usura do tempo. A história regista grandes rupturas e escandalosas divisões que continuam a marcar o seu tecido visível. E não só. Como esquecer o apagamento quase total, em diversas regiões, de numerosas comunidades cristãs, outrora florescentes?

Nem tudo é irremediável. Eu próprio testemunhei momentos impressionantes de ressurreição da Igreja: no rosto de João XXIII e na convocação do Vaticano II. Vieram depois longas e persistentes tentativas para os fazer esquecer. Repetidas notícias de escândalos correram por todos os meios de comunicação. De repente, chegou o Papa Francisco. Para usar a expressão de Ch. Péguy a pequena virtude da esperança voltou a dizer-nos bom dia todas as manhãs!

Bergoglio sabe que a duplicidade na pastoral da Igreja – “nem quente nem fria”, segundo a linguagem do Apocalipse - é pior do que a morte. Sem a memória viva da Paixão de Cristo, fonte de subversão dos poderes que multiplicam as vítimas da escravatura financeira, económica e política - o catolicismo perde o sal e não serve para nada: fica reduzido a mais uma religião. Vale a pena ver isto mais de perto.

2. A “era cristã”, fixada no séc. VI, por Dionísio, o Exíguo, tem falhas de cálculo, de alguns anos. Jesus, o Nazareno, nasceu provavelmente uns sete anos antes. Sendo assim, Jesus teria morrido com 37 anos, a 7 de Abril, do ano 30. Os cristãos não celebram a morte, mas sabem que Jesus não morreu de velho, de acidente, nem de doença prolongada. Foi condenado à morte, depois de ter sido barbaramente torturado, num processo político-religioso, a que temos acesso através de quatro narrativas, elaboradas com propósitos cristológicos e pastorais diferentes e, por, vezes, manipuladas.

Muitos cristãos gostam de ir, em peregrinação, a Jerusalém nesta data. Nunca senti nenhuma atracção por esse lugar, nesta ou noutra data. Tornou-se, para mim, por várias razões, uma referência saturada.
Tive, uma vez, um convite fantástico para visitar os lugares sagrados das grandes religiões. Quando estava quase seduzido pela oferta, a simbólica conversa de Jesus com a Samaritana desencorajou-me. O templo de Deus, respeitado ou ofendido, somos nós. O culto, em espírito, verdade e justiça pode e deve ser realizado em qualquer lugar.

No entanto, os católicos que forem em peregrinação à chamada Terra Santa não se esqueçam de que as únicas relíquias de Jesus que lá podem encontrar são as diversas e atormentadas comunidades cristãs de ritos diferentes – por vezes pouco ecuménicas - que celebram a Eucaristia, “por todos”. Importa partilhar com elas - nas suas diferentes expressões - a memória confusa da “mãe de todas as Igrejas”.

Lendo e meditando os Evangelhos, observo que Jesus e os discípulos, de modo diverso, fracassaram todos em Jerusalém. Enquanto Jesus estava banhado em lágrimas de sangue, os discípulos dormiam. Um deles entregou o Mestre aos inimigos, outro negou-o, os restantes fugiram e a impotência de Deus era o próprio crucificado. Apenas um grupo de mulheres, verdadeiras discípulas, aguentou tudo. Até no túmulo o procuram. Só elas perceberam que o passado estava vazio e foram convocadas para começarem o processo da ressurreição de toda a Igreja moribunda, no horror do Calvário.

3. Para o último Nietzsche, o cristianismo, ao impedir de atirar fora o lixo humano, os diminuídos, os fracos, conserva os que enfraquecem os povos. O indivíduo foi tomado demasiado a sério e colocado pelo cristianismo como um absoluto. A espécie humana só pode sobreviver graças aos sacrificados.

Nietzsche diz bem o que os cristãos devem recusar. Na cruz, foi a fraqueza que venceu, pela inclusão de todos os excluídos. Estamos numa das linhas sísmicas que atravessam o mundo: Islão/Ocidente, Norte/Sul, ricos/pobres. É na recusa destas fracturas que se pode vislumbrar a luz da Ressurreição.

Boa Páscoa
20.04.2014

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