09 março 2014

O SER HUMANO TEM CURA (2)

    
1. Dizem-me que a verdadeira cura do ser humano seria a sua substituição pelo pós-humano, realidade sem memória nem futuro, sem infância nem velhice, liberto da doença e da morte, despido de qualquer interrogação metafísica ou preocupação ética. Ao que parece, existem ciências e técnicas disponíveis para uma “saída limpa” da nossa humanidade cansada e, mesmo assim, irritantemente belicosa.
Como já sou velho, tenho dificuldade em me adaptar à ideia e não alinho em soluções de desespero. Prefiro recorrer a um aforismo de Heráclito: sem esperança, não encontrarás o inesperado. S. Paulo também não prometeu muito mais. Na célebre Epístola aos Romanos (cap.8), depois de muita ginástica mística e antropológica, observa com modéstia: vivemos suspirando e gemendo pela redenção do nosso corpo, num mundo em dores de parto, pois só estamos “salvos em esperança e ver o que se espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? Se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos”.
Contamos com a aurora depois da noite, deixando aberto o mistério indizível da existência. Não é inevitável que só a criança viva de perguntas e o adulto se afogue em respostas apressadas. Renascemos numa atitude de permanente interrogação. A invocação convencional de Deus, como pronta e beata solução para todas as questões e enigmas, confunde a divindade em que vivemos, nos movemos e existimos - como diziam os pagãos (Act 17,27) - com um irrisório tapa buracos de nada. A verdade está na procura.
  Humanizar-se é abrir-se às surpresas do céu e da terra, de dentro e de fora, do presente e do futuro. Mas sem romper com o reino das aparências, não é possível descobrir e curar a vontade de dominação que se esconde nos projectos mais grandiosos.
2. Ao glorificar a prodigiosa história do esforço humano que desde as cavernas criou e desenvolve uma civilização cada vez mais prodigiosa e sofisticada, procura-se ocultar a face escura desse percurso. Quem recorda vítimas esquecidas do progresso, as civilizações sepultadas, a memória eternamente apagada das pessoas que ninguém lembrará? Porque insistirmos na falta de respeito à natureza e aos seus precários equilíbrios, sabendo que comprometem o futuro das próximas gerações? Cada verão que passa, cada inverno que chega alarga-se mais o irreparável: a prevenção é demasiado económica.
Quando se celebra e interpreta a música, a literatura, a pintura, a arquitectura, esses frutos da espantosa criatividade de todos os povos e culturas, não se deve esconder tudo o que foi impedido e arrasado. Não nascendo de uma razão utilitária, esse tipo de cultura manifesta que o ser humano não tem preço, tem dignidade.
        Diz-se que Platão agradecia a Deus ter nascido homem e não bruto, grego e não bárbaro e, acima de tudo, ter nascido no tempo de Sócrates. O desprezo pelos membros dos outros povos, não revelava apenas a sua ascendência aristocrática, ofendia também a memória do seu mestre. A Sócrates, o filósofo dos filósofos, mediante o método da pergunta irónica e da maiêutica, só lhe interessava revelar os seres humanos a si próprios e torná-los virtuosos, vencendo a ignorância, fonte de todos vícios. Injustamente condenado à morte, observou: “é muito mais triste merecer um castigo do que sofrê-lo”.
      Na sua antropologia, a morte do corpo era uma cura. Libertava a alma dessa prisão. Ao ver os que choravam a sua condenação, terá reagido: “Porque chorais? Não sabeis que desde que nasci, estava condenado, pela natureza, a morrer?”
   Não basta vencer a ignorância e os erros que ela provoca. Não se pode deixar o nosso corpo à porta e viver como um puro espírito. O eu de cada pessoa é sempre um corpo animado por uma mente incarnada, ligado pelo conhecimento e pelo afecto aos outros, ao cosmos e a Deus.
Isto para dizer que não somos uma unidade monolítica nem uma pluralidade desarticulada. Compete-nos viver a nossa vocação espiritual na realidade carnal, ligados a tudo o que é espiritual e material, em múltiplas dimensões. As soluções unidimensionais, como as da troika, são um veneno.
3. A Quaresma não é um programa de dieta alimentar para vencer os desvarios do Carnaval. Este significa que, sem divertimento e prazer, fazemos do ser humano uma simples peça da cadeia de produção. O tempo de Quaresma é dedicado a descobrir quem somos: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar. Uma tristeza! Os cristãos eram obrigados a voltar ao Antigo Testamento. A alternativa actual é muito melhor: arrependei-vos e acreditai no Evangelho da Alegria, acreditai que tendes cura.
Neste Domingo, o diabo arma-se em assessor de Jesus, com um programa já pronto. Se queres fazer alguma coisa de jeito, tens de conseguir – à base de milagre é mais seguro – a dominação económica, religiosa e política. Jesus recusou todas as propostas, pois a sua missão consistia em nos libertar da vontade de dominação, raiz de todos os conflitos e guerras. As tentações que Jesus venceu são aquelas em que nós, Igreja, mais facilmente caímos. Por alguma razão foi cunhada a expressão: ecclesia semper reformanda. Sem um processo de conversão continua a Igreja não tem remédio. Mas há remédio.
Frei Bento Domingues O. P.
in Público
09.03.2014

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