01 fevereiro 2014

OS DEZ MESES DO PAPA FRANCISCO

         
1. No dia 11 de Dezembro de 2013, a Revista Time elegeu o Papa Francisco como a pessoa do ano. É raro que um novo protagonista consiga tanta atenção no palco do mundo e em tão pouco tempo. Cativou milhões que tinham perdido a esperança na Igreja. Nancy Gibbs, directora da Time, sintetizou as razões substanciais da escolha feita: “em nove meses, ele soube colocar-se no centro das discussões essenciais da nossa época: a riqueza e a pobreza, a equidade e a justiça, a transparência, a modernidade, a globalização, o papel da mulher, a natureza do casamento, as tentações do poder”.

Tentei, na Revista 2 do Público (22.12.2013), fazer um balanço desses nove meses. Não o renego nem julgo que haja mudanças de rumo. Pelo contrário. No entanto, o percurso é cada vez mais surpreendente e, para o mundo conservador, dentro e fora da Igreja, há sempre medo do dia seguinte. É o sentido desta reflexão.

Quando Jorge Mario Bergoglio, de 76 anos, aceitou ser Bispo de Roma, Papa da Igreja Católica Romana, não estava garantido o sucesso do caminho que escolheu. A renúncia de Bento XVI, mas querendo ficar por perto, era mais do que ambígua. Esteve muito tempo na Cúria, com imensas ocasiões para actuar e deixou apodrecer a situação até ao impossível. Ficar por perto, para quê? Não se entende, mas também não adianta levantar suposições inverificáveis ou fazer processos de intenção.

O Papa Francisco sabia que a primeira coisa que lhe era pedida pela opinião pública era uma operação de limpeza da Cúria pontifícia. O mais urgente seria varrer a casa: pôr a andar os que não queriam ou já não podiam mudar e formar um governo novo. Tinha-se tornado insuportável, para qualquer católico decente, ver a insistência dos meios de comunicação em narrativas de tenebrosos escândalos financeiros da banca do Vaticano e as revoadas de padres e até de bispos acusados de pedofilia. Consta que as indeminizações exigidas a certas dioceses deixaram-nas na absoluta penúria. Era evidente que as carradas de publicações moralistas, revestidas de pinceladas teológicas e de unção espiritualista, assinadas pelos papas, tinham perdido qualquer encanto. As periódicas campanhas temáticas, distribuídas pelas dioceses, tinham esgotado a sua precária eficácia. As viagens dos papas eram caras e entendidas como fuga às reformas de fundo, sempre adiadas.

Que fazer então?

2. O Papa tomou algumas decisões, mas não caiu na tentação de governar por decretos. Era preciso mudar tudo, a começar por ele próprio e do modo mais rápido e simples. Foi o que fez logo na primeira saudação, à janela do Vaticano e nunca mais parou: “Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo lhe deu e às necessidades actuais da evangelização” (Evangelli Gaudium, n. 32).

Nos meios conservadores, há muitas vozes contra as suas movimentações e declarações: este papa está a estragar a Igreja e a minar a sua doutrina mais segura; é tão descontraído a falar das coisas mais sérias que não parece o supremo guardião das certezas, mas um semeador de dúvidas; não sendo economista, atreve-se a dizer que esta economia de exclusão e de desigualdade mata; atacou o capitalismo como uma nova tirania; os alertas contra a corrupção, dentro e fora do Vaticano, colocaram-no na mira das máfias.

Em termos de balanço provisório destes dez meses de Papa, convém não perder de vista a história. A Igreja Católica Romana, mediante a ousadia inesperada e descontraída do velho Papa João XXIII, tinha começado uma grande revolução religiosa, no mundo contemporâneo. Ao convocar o Concílio Vaticano II, apontou um caminho que devolvia a palavra à Igreja, não identificada com a hierarquia, mas com o povo da graça de Deus, no qual, todos são sujeitos, em comunhão, na vida da Igreja.

Para as gerações mais novas, sejam leigos ou clérigos, a memória actuante desse acontecimento dos anos 60 do século passado (1962-1965), perdeu-se. Mesmo os que o acompanharam e seguiram com entusiasmo acabaram por ter a sensação de que tudo aquilo tinha sido num belo sonho sem futuro. Eram os “vencidos do catolicismo” do poema de Ruy Belo e dos comentários de João Bénard da Costa. Para os que consideraram o Vaticano II como um desastre para a Igreja, o importante era esquecer esse concílio.

Tanto os que se sentiram defraudados, como os que consideravam que o Concílio tinha sido uma má ideia, as reacções pró e contra não tiveram a mesma intensidade e as mesmas manifestações, em todos os grupos. No entanto, a mentalidade restauracionista do pós-concilio tentou agir de forma global: nomear bispos conservadores para todo o lado, sobretudo para a América Latina, publicar um novo Direito Canónico e um Catecismo Católico que os equipasse para recorrer à doutrina, sã e segura, e às boas orientações pastorais.

Importante também era eliminar as correntes teológicas – da Europa Central, Estados Unidos, América Latina, Ásia e África – que pudessem questionar essa normalização. No terreno, ficou quase só a Teologia do cardeal Ratzinger e dos que a repetiam. Ele era o teólogo da Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, o próprio Papa.

Enquanto tudo se passava no campo teológico e na administração eclesiástica, os ecos públicos desse mal-estar eram sempre limitados. Tudo mudou, quando os meios de comunicação começaram a encher-se de casos terríveis de pedofilia e da lavagem de dinheiro, como já referimos. Aí já não era possível alimentar hipocrisias. Os que procuraram fazer esquecer o que o Vaticano II tinha de mais inovador e pensavam recuperar o prestígio da Igreja, mediante operações restauracionistas ou de movimentos de santidade privilegiada, ficaram sem qualquer estratégia. João Paulo II deixou-se imolar pelo sacrifício e Bento XVI chegou à conclusão que não tinha saídas para nada. Entretanto, o cristianismo, em vários países da América Latina, enchia as Igrejas Pentecostais.

 3. No dia 8 de Agosto, o Papa Francisco publicou um conjunto de novas regras sobre o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, que passou pela criação de uma Comissão de Segurança Financeira no Vaticano com a finalidade de coordenar as Autoridades competentes da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano em matéria de prevenção e de combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição maciça. A Carta Apostólica foi publicada em forma de Motu Proprio, o que significa, nas regras do Vaticano, que é uma iniciativa pessoal do Papa. Os artigos acerca da finalidade da referida Comissão denunciam que os escândalos atribuídos ao Instituto para as Obras de Religião (IOR), mais conhecido como Banco do Vaticano, não eram criações dos meios de comunicação.

No passado dia 4 de Dezembro, prosseguiram os trabalhos da segunda série de reuniões do Conselho dos cardeais, instituído pelo Papa Francisco a 30 de Setembro, para o coadjuvar no governo da Igreja universal e para estudar um projecto de revisão da constituição apostólica Pastor bonus sobre a Cúria romana. Declarou que o importante é uma Igreja mais misericordiosa, pobre e missionária.

Muitas vezes, decretos e comissões servem para adiar o inadiável. Este Papa começou por assumir e continua a incarnar aquilo que propõe aos outros membros da Igreja. Para ele, a Igreja não é a hierarquia. Esta é apenas um conjunto de serviços instituídos para escutar, animar e orientar as comunidades cristãs. Mas a hierarquia, antes de ensinar, tem de aprender. As comunidades cristãs têm de viver na transformação do mundo, a partir dos excluídos, dos pobres, de todas as periferias.

O Papa Francisco está, pela sua prática e pelas suas declarações, a ajudar os católicos, as outras igrejas, as outras religiões, os agnósticos e os ateus a olhar o mundo, não a partir dos multimilionários e dos movimentos da Bolsa, mas a partir dos frutos de miséria gerados pela idolatria do dinheiro, do lucro a qualquer preço. Para pronunciar a muito glosada expressão, “esta economia mata”, não precisa de nenhum curso nas mais famosas faculdades de economia e gestão, católicas ou não. Basta ter os olhos abertos. Se ele não tomasse atitudes, não abordasse a questão do desemprego e da situação dos idosos e das crianças pobres, não fazia a ruptura com o mundo das estatísticas, o mundo dos números que abstraem das pessoas. Se fosse mais um fanático das redes e da Internet, teria apenas um contacto virtual com os pobres, sem cheiros e sem incómodos. Com este tipo de intervenções, M. Bergoglio criou um problema que não sei como o irá resolver: não se cansa de manifestar a sua radical discordância com a economia que mata, mas por outro lado, consta que, em algumas instituições universitárias da igreja, a orientação do ensino da economia, da finança, da gestão e da política, preparam os alunos para esse homicídio.

4. Escolheu as más companhias dos que certa doutrina da Igreja do passado, sem misericórdia, tinha classificado como pecadores ou, pelo menos, em situação irregular, impróprios para se aproximarem da comunhão sacramental. Atacou as obsessões do moralismo incapaz de escutar os homossexuais, as uniões de facto, os divorciados recasados. Para ele não vale tudo, mas o que não vale, de modo nenhum, é uma Igreja que não sabe acolher, não se deixa interrogar, uma Igreja sem a inteligência do coração e sem luta pela justiça social.

Algumas pessoas escandalizam-se com o lugar que ele dá às crianças e aos adolescentes “problemáticos”. A verdade é que deixou que uma criança de seis anos ocupasse a Sede Apostólica, que um bebé lhe tirasse o solidéu e já chegou a colocar este boné sagrado na cabeça de uma miúda.

Há dois mil anos, os apóstolos aborreciam-se ao verem as crianças seduzidas por Jesus e procuravam afastá-las. Agora, dizem que o Papa está a profanar as vestes sagradas. O Papa sabe que as crianças são, diariamente, vítimas de exploração e de maus-tratos, sobretudo, as crianças e os adolescentes que vivem na rua: 120 milhões no mundo inteiro e 30 milhões só na África.

A Capela Sistina é conhecida, venerada e visitada pela sua extraordinária beleza. Aí reúnem-se os cardeais para escolher o futuro bispo de Roma, o papa. Mais importante do que eleger um papa é celebrar um baptismo, a transformação cristã da vida. O Papa Francisco resolveu estabelecer a verdadeira hierarquia no Vaticano. Para celebrar o Baptismo de Jesus, contado nos Evangelhos, baptizou o filho de uma mãe solteira e a filha de um casal, casado apenas pelo civil, nessa Capela (12.01.2014). Não é muito usual. Perante varias mães, pais e 32 crianças, chamou a atenção para a nova orquestra: “Hoje o coro vai cantar, mas o coro mais belo é o das crianças. Algumas delas irão chorar porque têm fome ou porque não estão confortáveis. Estejam à vontade, mamãs: se elas tiverem fome, dêem-lhes de comer, aqui elas são as pessoas mais importantes”. Este Papa já tinha afirmado que as mães não deviam ter problemas em dar de mamar aos seus filhos, durante as cerimónias papais.

Dir-se-á que, nestes dez meses, ainda não teve tempo para se dedicar às mulheres, as mais excluídas na orientação da Igreja, apesar de terem sido elas as enviadas pelo Ressuscitado para evangelizarem os Apóstolos e de, por enquanto, ainda serem a grande maioria. Herdou um terreno minado pela Carta Apostólica, de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (22.05.1994). As teólogas feministas e os movimentos de mulheres cristãs certamente o irão ajudar a superar esta dificuldade, que nem é das maiores.

Dirigindo-se à Comissão Teológica Internacional (06.12.2013), em vez de lhes recomendar cautela e ortodoxia, incitou os teólogos a serem pioneiros do diálogo da Igreja com as culturas; a situarem-se como profetas nas fronteiras e não ficando para trás, na caserna. O magistério e os teólogos devem estar atentos às expressões autênticas do sensus fidelium.

A sensibilidade cristã dos fiéis não é só dos homens. As mulheres são sempre as esquecidas. O jornal L’ Osservatore Romano acaba de lançar um suplemento sobre Mulheres, Igreja e Mundo, de circulação mensal, de quatro páginas a cores. Mais vale tarde do que nunca.

Não se pode esquecer a forma como respondeu às perguntas dos Superiores Maiores das Congregações Religiosas. Destacou a importância da qualidade e do estilo da formação dos jovens religiosos. Em todas as ocasiões denuncia o clericalismo, com expressões tais que levam alguns a julgar que pertence a uma organização anticlerical! O Papa perdeu a devoção aos monsenhores. Pobres daqueles que já se julgavam na calha.

Nesse Encontro, a convicção mais abrangente é esta: as grandes mudanças da história acontecem quando a realidade é vista, não a partir do centro, mas da periferia. Trata-se, para o Papa, de uma questão hermenêutica: a realidade não se compreende a partir de um centro equidistante de tudo. Para a entender bem, é preciso mover-se da posição central da tranquilidade, da zona de conforto, para as zonas agitadas das periferias. Este é o melhor caminho para escapar ao centralismo e às focagens ideológicas (Cf. http://www.laciviltacattolica.it/; tradução em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526950-qdespertem-o-mundoq-o-).

Bergoglio quer abrir ao mundo, um futuro novo, mesmo a partir do Vaticano. Quem não gosta das suas inovações, irá sempre encontrar algum precedente para desvalorizar estes atrevimentos. O que importa é subverter a desordem estabelecida, que se tinha transformado numa ordem sagrada.

O Papa mandou uma carta aos futuros cardeais: “O cardinalato não significa uma promoção nem uma honra nem uma condecoração, é simplesmente um serviço que exige ampliar o olhar e alargar o coração”.

Anunciou uma viagem à chamada Terra Santa, nas pegadas de Paulo VI (1963). Não é o desafio religioso e político mais fácil que tem pela frente. Que contributo de justiça e paz poderá oferecer a uma região minada por todas as contradições do mundo?

Frei Bento Domingues

           in Seara Nova

Lisboa, 19 de Janeiro de 2014

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