26 janeiro 2014

NÃO ENTERRAR O BAPTISMO

    
     1. Não me lembro nada de ter sido baptizado. Recebi o crisma na adolescência, mas só me recordo de que o grupo em que fui apresentado escapou todo de uma temida palmada ritual do bispo. Com todo o respeito pelos anabaptistas, sou, no entanto, um defensor fervoroso do baptismo de adultos e de crianças, sem pensar que Deus só se dá bem com os baptizados.

   É verdade que, às vezes, regresso desconsolado e apreensivo com o futuro de certas celebrações baptismais. Que irão fazer os pais para promover a progressiva descoberta do sentido e das exigências inscritas no espantoso programa simbólico do baptismo? A Igreja doméstica – a não confundir com certo beatério familiar – deve ser o espaço de uma evolutiva pedagogia da fé cristã que saiba puxar pelo que há de melhor nas pessoas: a descoberta da alegria no acolhimento dos outros, na partilha e na recusa dos caminhos da injustiça.

  Ser cristão é adoptar o projecto de Jesus Cristo, acolhendo o seu espirito de ruptura com as seduções diabólicas da dominação económica, política e religiosa e o renascimento para a liberdade dos filhos de Deus, sem irmãos excluídos da mesa comum. Não se trata de papaguear fórmulas dogmáticas nem de receber instruções moralistas, mas de uma mudança interior, de uma luz divina, no íntimo da consciência, que se inspira na prática de Jesus e dos seus melhores discípulos       

 Hoje, quero recomendar vivamente uma obra sobre o mergulho baptismal –Take the plunge – e a sua confirmação que nos pode ajudar a reencontrar a Fonte e o Sentido em todas as encruzilhadas da vida[1]. O autor é um dominicano inglês, T. Radcliffe, que já tem outras obras publicadas em português. É professor em Oxford e ex-Mestre Geral da Ordem dos Pregadores. No exercício dessa missão percorreu o mundo. Sempre admirei a sua excepcional capacidade de aprender com todos, em todas as situações. Serve-se de tudo para tecer as suas conferências, a sua pregação e os seus livros de teologia, com uma requintada cultura literária, artística, histórica, bíblica, patrística e sempre em registo ecuménico. O inesgotável sentido de humor não o afasta das manifestações de rua na defesa dos empobrecidos e marginalizados.

 2. As crianças são baptizadas desde o começo do Cristianismo e tornou-se tradição de quase todas as Igrejas Cristãs. Já os Actos dos Apóstolos aludem ao baptismo dos adultos e das suas famílias.

No séc. IV, durante algum tempo, existiu uma tendência para adiar o Baptismo. Não se duvidava da importância de baptizar as crianças. A razão era outra. Este era o Sacramento do grande Perdão. Dada a disciplina penitencial da época, não se queria gastar a sua eficácia antes de tempo. O Baptismo não era garantia de um futuro sem pecado e corria-se o perigo de passar o resto da vida em penitência. Muitas pessoas, como o próprio imperador cristão Constantino, adiavam-no até ao último momento e Jacqueline de Romilly foi baptizada aos 95 anos dizendo: já é tempo! Quando Sto Ambrósio foi eleito Bispo, com a idade de trinta e cinco anos, não era baptizado. Teve de receber este sacramento antes da ordenação.

O baptismo das crianças, apesar dos inconvenientes – antigos e modernos - exprime uma realidade divina e humana que poderíamos ser levados a esquecer no baptismo de adultos: afirma a absoluta gratuidade do amor que Deus nos tem; a criança ainda não fez nada para merecer seja o que for, quer de Deus quer dos pais. Ora, se os pais fazem tudo pelos seus filhos mesmo antes de nascerem, quanto mais o Deus que nos amou primeiro.[2] 

Deus não depende dos nossos méritos. Somos nós que dependemos do seu amor. De qualquer modo, os cristãos são confrontados com narrativas de um Deus que se tornou criança e adolescente, antes de surgir homem feito, como no Evangelho de Marcos, a dizer-nos que tudo pode ser diferente, pois somos amados e impõe-se uma reorientação da vida e de todos os seus valores.   
 3. De adultos ou de crianças, o baptismo é para refazer a vida toda. O ser humano não é de uma peça só e de uma só vez. Vai sendo e nunca de forma linear. A sua morada não é o passado, não é o presente. É a esperança, é o futuro. Sem ele, é o suicídio. Não vale a pena idealizar a infância, a adolescência, a idade adulta ou a da reforma. Se há tanta literatura sobre todas estas idades, é porque nenhuma delas é um paraíso. Por razões diversas, quase ninguém está contente com a idade que tem, mas vivemos num tempo em que é difícil ter crianças e ocupar-se dos idosos. Os desempregados não sabem de que terra são: de mendigar têm vergonha e já não têm condições nem de imigrar nem de ficar. O que é próprio do Baptismo cristão é não se conformar com o mundo como está. A sua natureza é pascal, é passagem, não é resignação.
        Celebrar a data do Baptismo para um renovado encontro com a Fonte e com a Luz, para não esquecermos de onde vimos e para onde vamos.
Frei Bento Domingues, O. P.
26.01.2014  
       in Público


[1] Timothy Radcliffe OP, Imersos na vida de Deus. Viver o Baptismo e a Confirmação, Paulinas, 2013

[2] Jer. 1, 5

   

    

          
 

 




 

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