21 abril 2013

As cicatrizes da Etelvina

Ainda não conhecia ninguém com este nome e já gostava dele. Há muito tempo. Quando um dia me cruzei no acaso da vida com a Etelvina, começámos por saber que os dois tínhamos ouvido várias vezes a canção do Sérgio Godinho com o nome dela. Mas se a vida é um espaço infinito com uma infinita diversidade de estrelas, há muita gente a quem toca ser cometa errante. Depois de meia eternidade a Etelvina voltou a passar por aqui. Tal como a da canção, a sua vida raras vezes teve tréguas. Não é que isso seja invulgar, mas com a Etelvina também foi assim. Após algumas narrativas das suas voltas e revoltas, apercebi-me de que trazia muitas cicatrizes dos embates com outros habitantes do espaço astral. Cicatrizes da vida, diz-se. Sim, cicatrizes da vida, mas de uma vida que nunca se resignou a morrer ou a ficar na morte. Cicatrizes que provam ser o mesmo aquele que desce aos infernos e aquele que emerge de novo para a vida. Neste caso, aquela, a Etelvina. Pensei então: quando voltar para casa vou ler outra vez a narrativa do encontro de Jesus com Tomé (Jo 24, 29). Embora sabendo que cicatrizes e chagas não são a mesma coisa, fui verificar com mais atenção o desafio feito à racionalidade daquele apóstolo. As chagas e as cicatrizes são a prova de um combate talvez perdido mas não derrotado. E são a prova de que há uma vida que não morre, ou que de modo nenhum pode ficar na morte. Há quem diga que as cicatrizes da alma são mais difíceis de ver. Não são. As da Etelvina estavam quase à vista por detrás de um véu que cobria o seu rosto de serenidade e transparência. Já não eram cicatrizes de sofrimento, eram marcas de uma saída vitoriosa de maus-tratos em casa, desconsideração na sociedade, descriminação no trabalho. E, no meio disso, um longo episódio de profunda tristeza. Também tinha algumas marcas no corpo sobre as quais não me atrevi a perguntar nada. Aliás, não tinha que perguntar nada de nada. Bastava-me ver que ela agora era uma mulher ressuscitada, com uma paz interior, uma compreensão das dificuldades dos outros, um olhar benevolente sobre a vida que só pode ser próprio de quem se ergueu das profundezas do sofrimento. Tive a sorte de não passar pela descrença de Tomé, de não me ter sido dito para meter as mãos nas chagas, de não ter que ver para crer ou, talvez melhor, de crer para ver. Mas o sentimento final é semelhante. A Etelvina não é a mesma, mas é a mesma Etelvina. Já não é uma só pessoa, uma única mulher, mas muitas mulheres e muitas pessoas numa mulher única. Não deveria ser preciso passar pelo sofrimento ou por tantos sofrimentos para se ressuscitar, mas é extraordinário, admirável e necessário que se ressuscite de uma descida à escuridão do mal e da morte. De uma morte para a vida ou de uma vida morta. Por isso, Etelvina, adeus até um dia destes. De vez em quando irei bater à tua janela para ver através dela os campos da eternidade.
Frei Matias, O.P.

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