18 novembro 2012

Tudo em aberto (2)

    
           1. Com a chamada "morte de Deus", anunciada por Nietzsche, preparada e acompanhada por outras correntes que encaravam Deus e o ser humano como rivais, eclipsou-se a poesia da criação divina e da criação humana, que brilhavam da mesma surpresa e da mesma alegria. Na generalizada era da suspeita, vai entrar em crise a nova e eterna aliança-alma da "idade cristológica", celebrada na Eucaristia.

           Jesus Cristo deixava de ser o Emmanuel, Deus connosco, o rosto humano do maior acontecimento divino. Ruíam as suas definições dogmáticas do séc. IV e V, comentadas, durante séculos e séculos, nas Igrejas cristãs e sucediam-se fortes abalos nos próprios fundamentos da identidade cristã e da essência do cristianismo. Os próprios textos do Novo Testamento, submetidos ao método histórico-crítico, passaram a habitar as incertezas das ciências humanas.

         É verdade que, desde os séculos XVIII-XIX até à actualidade, já muita água passou por baixo e por cima das pontes, dentro e fora das Igrejas, na investigação dos textos e dos contextos que narram as origens das expressões da fé cristã. Xavier Pikaza, um conceituado biblista espanhol, no seu contributo para a obra coordenada por Anselmo Borges, fruto de um colóquio substancial, subordinado à pergunta Quem foi, quem é Jesus Cristo? (Gradiva), fez uma resenha exemplar desse longo percurso.

         A reedição da obra-mestra de Hans Küng, O Cristianismo, Essência e História (Círculo de Leitores), em Portugal, é o acontecimento editorial mais importante do mundo cristão em 2012. Precisamos dela para não cairmos em desdobradas ilusões.

         A Essência do Cristianismo já tinha sido o título que, em 1841, Ludwig Feuerbach dera a uma obra cujo objectivo confessado era transformar os teólogos em filósofos; os teófilos (amantes de Deus) em filantropos; os candidatos ao além em estudiosos deste mundo; os lacaios religiosos e políticos da monarquia e da aristocracia celeste e terrestre em cidadãos livres e conscientes da terra. Era a transformação da teologia e da cristologia em pura antropologia.

         2. Esta redução não exaltou a condição humana, como se pretendia. Freud (1855-1939) destacou as três humilhações, as três doenças narcísicas: primeiro, Copérnico demonstrou que a Terra girava à volta do sol, privando-nos do lugar central no universo; depois, Darwin mostrou a nossa origem, fruto da cega evolução, privando-nos do lugar privilegiado entre os seres vivos; finalmente, quando o próprio Freud tornou visível o papel predominante do inconsciente nos processos psíquicos, esclareceu que o nosso ego não manda em sua própria casa. Hoje, surgem humilhações adicionais: a nossa mente, em si mesma, é apenas uma máquina de computação para o processamento de dados. O nosso sentido de liberdade e autonomia seria ilusão do usuário dessa máquina. As neurociências estão cheias de promessas, até acerca do que ainda não podem saber. Também não sabemos o futuro da biotecnologia, mas já estamos tão desiludidos e aborrecidos com a nossa condição humana - a solução de um problema é sempre a origem de outro - que é normal que se deseje um pós-humano, tão cientificamente arrumado que nos liberte de todas as preocupações, mesmo se a troco da nossa liberdade. Talvez não seja muito fácil um referendo mundial que possa decidir do presente e do futuro da humanidade.

         Não será possível continuar o nosso trabalho humilde, nunca acabado, de nos libertarmos de ideias rasteiras, sempre renascentes, tanto acerca de Deus, como do ser humano? A rivalidade existencial - ao contrário da competição lúdica - é infantil e mortal para ambos. Daí a importância de percorrer caminhos, dentro e fora das religiões, que tenham gosto nas diferenças e que não matem as próprias diferenças.

         3. Para o Novo Testamento, a grande rivalidade não é entre Deus e o ser humano, mas entre o Deus libertador e a divinização escravizante do Dinheiro, do máximo lucro a qualquer preço. Seria ridícula uma divindade que dissesse: eu quero os seres humanos ao meu serviço, ao serviço dos meus caprichos e voltados para mim. O lugar do encontro transcendente com Deus são as pessoas que precisam de ajuda. Daí que a incómoda e constante pergunta que Ele nos faz, do começo (Gn 4, 9) ao fim do mundo (Mt 25), seja esta: que fizeste do teu irmão?

         Quando Jesus diz: não podeis servir a dois senhores, a Deus e ao Dinheiro (Mt 6, 24), os discípulos espantam-se. A riqueza era um sinal de gente bem sucedida, divinamente abençoada. Para mal, já bastavam os pobres, imagens do abandono de Deus.

Eles não tinham percebido nada e nós também não. Precisavam e precisamos de silêncio, de oração e de meditação para fazermos a pergunta essencial: quem manda em nós? Se for o amor ao dinheiro, já temos dono: seremos escravos e precisaremos de tornar os outros escravos do nosso desejo.

         Se quisermos ser livres e ajudar na libertação dos oprimidos, vamos continuar a precisar de dinheiro e de bens deste mundo. É evidente, mas surgirá outra pergunta: o dinheiro é dono ou instrumento? A nossa civilização teima numa solução que sempre perdeu os seres humanos e as sociedades: criar sistemas para dominar. Ao fazê-lo devora-se a si mesma. Arranja lenha para se queimar. Uma civilização comandada pelo amor do serviço caminharia para a liberdade.




Por Frei Bento Domingues O.P.
Crónica semanal publicada no jornal Público

 

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