02 outubro 2012

AS MULHERES NÃO CONTAM?


1. Claro que contam. A sua presença qualificada, em muitos sectores da sociedade portuguesa, é cada vez mais afirmativa e insubstituível. Alguns homens chegam a temer um “desequilíbrio” que possa afectar privilégios ancestrais.
Esse destaque feminino, ao mostrar uma realidade irrecusável, sublinha o contraste com um passado humilhante, não muito longínquo. As contínuas notícias de violência doméstica que, por vezes, vai até ao homicídio conjugal, arrefece as visões mais eufóricas. Se a violência doméstica designava, sobretudo, os maus tratos dados às mulheres e crianças, estende-se, cada vez mais, aos idosos, mulheres e homens. Sem adequadas pensões de reforma, ficam sem meios para garantir a defesa da sua dignidade. A predominância actual da cultura utilitarista não pode entender o que exige e implica a dignidade humana dos idosos.
As Igrejas cristãs foram confrontadas, desde o começo, com o estado de negação das mulheres na cultura judaica, gravado para sempre na expressão: “sem contar mulheres e crianças” (Mt 14, 21; 15, 38 e //).
Era, de facto, o retrato da realidade em que Jesus nasceu, foi educado, mas que recusou. As mulheres, afastadas da vida pública, confinadas ao lar, preparando-se para o matrimónio, estavam destinadas a sacrificar-se pela família até ao fim dos seus dias, sob o olhar atento do pai e do marido. Sem estudos, sem papel na religião, sem posses, não tinham qualquer capacidade de decisão autónoma.
Nesta situação, estava certíssima uma oração masculina, cínica e diária: “Bendito sejas, Senhor, por não me teres feito mulher”. (Tos. Ber. VII, 18)
2. Dizem os especialistas, que a ruptura activa de Jesus com essa situação representa um dos traços essenciais da originalidade da sua intervenção histórica. Afrontou tudo o que, no plano social e religioso, marginalizava as mulheres. Segundo as narrativas da paixão e ressurreição, Jesus encontrou nelas quem melhor entendeu a sua mensagem e o seu caminho. Garantiram futuro ao movimento cristão, quando tudo parecia morto.
Artur Cunha de Oliveira publicou uma obra notável sobre Jesus de Nazaré e as Mulheres, a propósito de Maria Madalena (Instituto Açoriano de Cultura, 2011). É uma obra de referência para a teologia feminista e pode ser de muito proveito para os anti-feministas. O autor é um sacerdote católico, dispensado do ministério e casado, licenciado em Teologia Dogmática e em Ciências Bíblicas, tendo sido professor no Seminário Episcopal de Angra, Cónego da Sé e assistente diocesano de vários movimentos, organismos e associações de apostolado.
Em 2011 nasceu a Associação Portuguesa de Teólogas Feministas. Criada por Teresa Toldy, Fernanda Henriques, Maria Carlos Ramos e Maria Julieta Mendes Dias, com os seguintes objectivos: contribuir para o aprofundamento da investigação teológica feminista; criar condições para a troca de experiências de investigação entre investigadores feministas de Teologia a nível nacional e internacional; relançar, em Portugal, o debate sobre as Mulheres, numa perspectiva ecuménica.
Esta Associação vem preencher, entre nós, uma lacuna no campo da teologia, inscrevendo-se num movimento sem fronteiras. A publicação das comunicações do I Colóquio Internacional de Teologia Feminista será apresentada no próximo Colóquio, marcado para o próximo mês de Novembro.
3. A reflexão teológica na Igreja não tem sentido desligada da experiência concreta das comunidades cristãs. É, por natureza, contextual. A descoberta dos direitos e do seu papel na sociedade obrigaram as mulheres cristãs a fazer uma verificação: a nossa situação é esquizofrénica. Por um lado, participamos na emancipação das mulheres na sociedade e por outro, é-nos dito que na Igreja não pode ser assim, tem de ser diferente, pois ela não existe para reproduzir a sociedade, mas para a evangelizar na fidelidade a Jesus Cristo. Manifesta-se, precisamente aqui, um dos aspectos do debate. Na constituição hierárquica da Igreja, não há lugar para as mulheres. Não têm acesso aos ministérios ordenados, pois decretaram que o sacramento da Ordem não é para elas.
Se os ministérios ordenados são para servir, perguntam-se: que haverá em nós, por sermos mulheres, que nos impede de ser chamadas a servir as comunidades cristãs? Surge-nos a dúvida: se fossem verdadeiramente um serviço, seríamos as primeiras a ser chamadas. Como se trata de poder, fica privilégio de homens.
Note-se que nem todas pretendem ser chamadas a preencher a lacuna da falta de vocações masculinas. Mas não escondem o que as comunidades católicas teriam a ganhar com as virtualidades da diferença feminina nos ministérios ordenados. O que não suportam, enquanto cristãs, é que as mulheres não contem na orientação da vida das comunidades cristãs e sejam reduzidas ao estado pré-cristão em que Jesus as encontrou.
A Igreja nunca poderá aceitar a vontade do Simão Pedro do evangelho apócrifo segundo Tomé: “ Maria deve ir embora, pois as mulheres não são dignas da vida”. A resposta do Jesus desse evangelho é dos diabos: “Vede, vou atraí-la para que se torne macho a fim de que ela também se torne um espírito vivente que se assemelha a vós, machos.”
4. Quando certas personalidades da Igreja, para recusar às mulheres determinadas funções, invocam a prática de Jesus para as fundamentar, importa não esquecer o seguinte: antes de mais, é preciso ver a qualidade e o volume de intervenções de Jesus que são uma autêntica revolução; alteraram completamente as ideias e atitudes que ofendiam e marginalizavam a mulher, que faziam dela um ser menor, uma eterna criança. Hoje, abundam os estudos que podem evidenciar o salto civilizacional e religioso que a prática de Jesus e a sua palavra representam.
O que não é aceitável é o seguinte: não se olha para esse acontecimento e, depois, fala-se de uma ausência nas decisões de Jesus, acerca de problemáticas que não pertenciam à sociedade em que Ele viveu. Por exemplo: quando se fala dos ministérios ordenados das mulheres, não é ridículo imaginar um ritual que hoje e há séculos se pratica nas Igrejas para ordenar padres ou bispos? Figurar Jesus, paramentado, de mitra e báculo, rodeado de bispos e padres e de candidatos prostrados de rosto por terra, esperando a sua vez, é não só ridículo como inteiramente anacrónico. Se imaginarmos as coisas assim, Jesus de facto, não ordenou mulheres como não ordenou homens. Só que a questão não é essa. A questão é simples porque é que este ritual foi criado para homens e nunca para mulheres. A partir daqui fica tudo baralhado. O que importa é responder hoje, na problemática de hoje, à novidade da prática de Jesus para hoje e para sempre. Graças a Deus, Jesus Cristo continua vivo e nós, continuamos surdos e cegos.

Frei Bento Domingues, O.P.

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